Os leitores falam às Senhoras: Sara Figueiredo Costa (jornalista e crítica literária)



Queridas Senhoras,

sabem que a Sara Figueiredo Costa comissariou a exposição «Contar o mundo - A reportagem em banda desenhada», integrada na última edição do Amadora BD (dedicada precisamente ao tema «Reportagem»)? O gosto pela banda desenhada é uma das facetas desta crítica literária e jornalista cultural (e é essa faceta a dar a pista para um dos nossos próximos convidados; gostamos muito quando isso acontece). Enquanto não procede às manobras de reanimação do seu blogue, Cadeirão Voltaire, podemos acompanhá-la no Parágrafo, o suplemento literário do jornal de Macau Ponto Final, e na revista Blimunda, da Fundação José Saramago.


1. O que está a ler neste momento?

Socialism is Great, um livro de memórias da escritora chinesa Lijia Zhang, com um título apropriadamente irónico.

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Acabei de ler Embalando a Minha Biblioteca, de Alberto Manguel (Tinta da China), um livro belíssimo que parte da tristeza profunda de ter de desmantelar a biblioteca pessoal para uma reflexão sobre o modo como nos relacionamos com os livros e sobre como a biografia de um leitor é um conjunto de fragmentos dispersos pelas prateleiras que se foram enchendo desde a infância.
A seguir, creio que lerei Constantinopla, de Théophile Gautier, que a Relógio d'Água acaba de publicar em tradução de João Moita.

3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros

Muitas das minhas memórias felizes da infância têm algo que ver com livros. Lembro-me de ler Os Sótãos Furados, de Maria do Carmo de Almeida (Verbo), e acreditar que poderia criar uma comunidade semelhante no meu bairro (infelizmente, o meu prédio não tinha sótão e invadir prédios alheios revelou-se um desafio insuperável), e de ler O Feiticeiro de Oz, de L. Frank Baum, e ficar completamente embrenhada naquele universo e na estrada de tijolos amarelos.
Também me lembro bem de começar a arrumar os meus livros por categoria, procurando a melhor lógica, acreditando que devia começar a construir algo semelhante a uma biblioteca.

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

Tantos... Dos livros de Os Cinco, de Enid Blyton, que li várias vezes, ao Pela Estrada Fora, de Jack Kerouac, que li numa edição emprestada. A poesia de Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner e Almada Negreiros, que havia lá em casa, ou a de Rimbaud, Walt Whitman e Baudelaire, que fui descobrindo nesses anos. E houve um livro essencial: Daqui Ninguém Sai Vivo, a biografia de Jim Morrison escrita por Jerry Hopkins e Daniel Sugerman (Assírio & Alvim), que li, reli, sublinhei e anotei até à exaustão, de tal modo que as páginas estão quase todas soltas da lombada. O facto de adorar os Doors e ter uma admiração dedicada por Jim Morrison levou-me a esse livro e esse livro levou-me aos autores da Beat Generation, a Wallace Stevens, a Aldous Huxley, a Shelley, a Rimbaud e a muitos outros autores que, de outro modo, só teriam aparecido mais tarde na minha vida.

5. Um local público onde goste de ler

Na esplanada, se não houver vento nem gente a falar muito alto.

6. O seu recanto preferido de leitura (em casa)

Talvez a cama seja o preferido, mas também gosto muito de ler num sofá individual entre as estantes da biblioteca.

7. Uma biblioteca importante para si

A Bedeteca de Lisboa, nos Olivais, onde me abasteço de livros de e sobre banda desenhada, com o auxílio do Marcos Farrajota, um bibliotecário ímpar. Acrescento a Biblioteca de Sir Robert Ho Tung, em Macau, onde às vezes passo algum tempo a ler num edifício belíssimo e com um jardim onde apetece ficar muito tempo.

8. As livrarias que costuma visitar

Depende de onde estou. Em Lisboa, costumava ir à Pó dos Livros, até mudar de casa (e tristemente, a Pó dos Livros acaba de encerrar). Agora, gosto da Leituria, quer para encontrar livros novos, quer para procurar preciosidades nas prateleiras dos livros em segunda mão. Por contingências várias, não tenho frequentado livrarias lisboetas de que gosto muito, como a Letra Livre e a Ler Devagar.
Em Macau, costumo tentar a sorte num alfarrabista sem nome, na zona velha da cidade, e vou encontrando alguns livros em português e inglês e arriscando nos livros em chinês, para quando os conseguir ler em condições (ainda vai levar uns anos...). Recentemente, descobri a Júbilo 31, especializada em livro ilustrado, álbuns, banda desenhada e fanzines, com muitas edições de pequenas editoras da China e de Taiwan. Em Hong Kong, gosto da Eslite, mas gosto ainda mais da Swindon Book Co, em Tsim Sha Tsui, cujos recantos já vou conhecendo bem.

9. Uma editora de que goste particularmente.

Há várias editoras cujo catálogo e atitude me entusiasmam por diferentes motivos. Vou nomear algumas: Antígona, Tinta da China, Relógio d’Água, Orfeu Negro, Planeta Tangerina, Chili Com Carne, Averno.

10. Que livros gostaria de reler?

Agora deveria responder Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, para ficar bem no retrato... mas não. Acho que gostaria de reler Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Li-o na adolescência e não gostei, mas gostei muito de outros livros de Camilo que li mais tarde e gostava de tirar esta teima.

11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

Sei lá se chego à velhice. Não estou a guardar nada, mesmo sabendo que nunca terei tempo para ler todos os livros que gostaria.

12. Acessórios de leitura que não dispensa

Bom, sem os óculos é difícil, já que a miopia e o astigmatismo não permitem. O lápis também é essencial, para sublinhar e tirar notas à margem (a não ser que se trate de um livro ilustrado ou de banda desenhada, ou de algum exemplar muito antigo, casos em que as notas se tiram a caneta num caderno).

13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

Depende. Se a leitura tiver motivos profissionais, tenho de insistir e persistir - ao contrário do mito urbano que diz que os críticos não lêem os livros, nunca escrevi sobre um livro que não tivesse lido atentamente. Se não for assim e o livro se revelar má companhia, abandono-o sem remorso.

14. Costuma ler sobre livros? Quais são as suas fontes?

Muito. O livro enquanto tecnologia, objecto histórico, testemunho interessa-me muito. Em tempos, trabalhei com livros medievais e era fascinante perceber cada caligrafia, aquilo que se escondia nos ‘erros’ dos copistas, o modo como cada volume era encadernado. Todas essas coisas pequenas desvendavam histórias maiores, que ajudavam a perceber o papel do livro numa época em que os livros eram poucos e apenas acessíveis a alguns. Muita coisa mudou desde então, mas o livro enquanto objecto não mudou assim tanto, se pensarmos que continua a ser um volume de folhas ordenadas e encadernadas de algum modo, entre a capa e a contracapa. Já não é só isso, claro: hoje pode ser uma série de 0 e 1 num ecrã luminoso. Ainda assim, fazemos parte de uma história que vem das tabuinhas de argila mesopotâmicas, passa pelos rolos que terão ardido em Alexandria e chega aos volumes que ordenamos nas prateleiras (e aos ficheiros que guardamos em suporte digital e que procuram reproduzir o modo como lemos em papel). Quanto às fontes, são quase sempre outros livros e o que vai sendo encontrado na internet (em bibliotecas online, mas também em artigos).


15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade

«Tem uma notável tendência para ler a sua vida como um texto literário, para interpretá-la com as deformações próprias do leitor empedernido que foi durante tantos anos. (...) Vive numa fortíssima e angustiada psicose do fim de tudo. E ainda nada nem ninguém o conseguiu convencer de que envelhecer tem a sua graça. E tem?»
Enrique Vila-Matas, Dublinesca (Teorema), p.10




(Penso que vou pedir autorização à Sara e incluir a resposta à questão 14 na minha cadeira de História do Livro. Vem mesmo a calhar :) )


Beijinhos a todas,

Céu

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