Linha da Beira Alta



Queridas Senhoras,

viro as costas à linha do Sul e tomo lugar no expresso da Beira Alta. Adeus Algarve, adeus Lisboa, vou à terra! Pena que a partida não seja de Santa Apolónia, tão mais romântica e literária, mas pronto, o Oriente fica mais perto e faz as vezes. Vou sozinha e bem acompanhada, o livro é Gente feliz com lágrimas mas vou com mais vontade de levantar os olhos das letras do que de fixar-me nelas. A culpa não é do João de Melo, é que esta é uma viagem que não faço há décadas, não tenho memória do trajecto mas saboreio antecipadamente os nomes das estações e apeadeiros. Que diferença para a viagem tão sem mistério por auto-estrada! E não é que há um transbordo imprevisto entre Coimbra e Mortágua? Ó senhor revisor, não causa transtorno nenhum. Empresta mais um pouquinho de aventura à viagem e transportar a bagagem não custa nada, que eu vou leve e o coração ainda mais.

O autocarro segue rente do curso do rio, por Penacova, a paisagem é escarpada, julgo que lhe chamam Livraria do Mondego. Em Mortágua retomamos a marcha, desta vez no regional, e agora é que estamos mesmo na Beira “Ialta”. Santa Comba Dão, Carregal do Sal, Oliveirinha-Cabanas, Canas-Felgueira, Nelas, Mangualde, Gouveia, Fornos de Algodres, fora os apeadeiros. Cá me fico por Celorico, até à aldeia agora é um pulinho.

- Ó tia! Já cheguei.

- Graças a Nosso Senhor!

Tenho um caldo verde à espera que sorvo numa delícia e com a merenda da viagem dou o almoço por aviado. Qual quê! Não viram vocês o showcooking, cozinha ao vivo, a salada de bacalhau desfiado feita à minha frente, com cebola, tomate e azeite de nos pormos a chorar. Restaurantes lisboetas de chefs? Ah ah ah ah!

O tempo dilata-se, tenho 48 horas para arquivar cheiros e gestos para os outros 363 dias que não estou aqui. Viajando leve e sozinha, ponho-me a andar à maluca (à doida mesmo, hoje estou à rasquinha das pernas), a percorrer as estradas de nariz no ar, a inspirar muito. O que vale é que ninguém me conhece. Espera…que se lixe.

Mergulho no rio quase sempre sozinha também, nado debaixo de água demasiado tempo, demasiadas vezes, mas nunca é suficiente. Só mais um mergulho, só mais umas braçadas, só mais 48 horas roubadas a este Verão imprevisto, sempre igual, que seja sempre, sempre igual.

Regresso ao fim da tarde pouco estafada, a energia que trago não se gasta assim. E depois não há pernas que não se recomponham com a sopa e o pão de trigo, e o espírito alimenta-se das histórias da tia, conversas à mesa e na varanda com vista sobre os montes, confidências que terei pudor de contar seja a quem for.

À volta o expresso vai directo. Antes da Pampilhosa, já a bendita chuva embacia as janelas do comboio. O livro vai na mão mas pouco leio ainda. Continuo enamorada da paisagem e suspensa do que vai ficando para trás.

Adeus, adeus, até ao meu regresso!

Beijinhos a todas,

Céu

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