A nossa filha feia



«Tudo o que Kosztolányi escrevia era invariavelmente perfeito.» 
Sándor Márai


Queridas Senhoras,

imagino que a citação acima tenha captado a vossa atenção tanto quanto captou a minha, quando peguei neste livro na Feira do Livro Usado da Casa da Esquina, em Coimbra. Foi, claro, motivação suficiente para trazer para casa Cotovia, de Dezső Kosztolányi.

Quiet, shattering, perfect. É assim que a The New York Review of Books o descreve, e eu não saberia encontrar melhores três palavras para o fazer.

«Cotovia era uma boa rapariga, muito boa, mesmo, e única alegria da sua vida. Era o que Ákos dizia constantemente, a si e aos outros.
Sabia que não era linda, a pobre, e há muito sofria com isso. Mas, depois, passou a vê-la, de algum modo, cada vez mais imprecisa, mais apagada, envolvendo a sua imagem num nevoeiro que a esbatia e, já sem pensar como ela era, amava-a tal como era, infinitamente.»

Naquele dia, os Vajkay interrompem violentamente a sua rotina, religiosamente repetida dia após dia, semana após semana, mês após mês, para acompanharem a filha ao comboio. Cotovia vai visitar uns tios durante uma semana. Os pais, Ákos e Antonia, sofrem com a visão do comboio a afastar-se, levando dentro dele a sua filha, companhia segura, já passada da idade de casar mas nem por isso incomodada, pois agrada-lhe ser o fiel da balança lá em casa, o bastião de constância, de estabilidade, de parcimónia, de contentamento despojado, frugal.

E no dia seguinte começa a mudança a esgueirar-se, insidiosa, por aquela fenda aberta. Que irresponsabilidade! Não saberiam os Vajkav que basta uma interrupção na rotina, uma apenas, para que de repente se perca o controlo sobre o rumo das coisas? O velho casal acorda às onze e meia da manhã, espantado, e espantando até quem passa na rua e vê as janelas fechadas até tão tarde.

«Antes, os Vajkay, em cada novo dia que Deus dava, estavam já a prumo às sete horas. Cotovia tinha já escancarado as janelas, e arejava, e limpava.»

Acordam com fome. Cotovia decidira que, durante a sua ausência, os pais deveriam abster-se de fadigas e ir comer ao melhor restaurante da terra — que, ainda sendo o melhor, seria certamente sofrível, nada como a comidinha caseira que ela preparava para os pais todos os dias, mas era um sacrifício necessário.

«Nesse preciso instante, entravam dois pasteleiros, touca branca na cabeça, trazendo, num tabuleiro comprido, enorme quantidade de mil-folhas, e recheados com creme de ovo, de um loiro maravilhoso, e cuja crosta de manteiga dourada no forno, sob a espessa camada de açúcar, antecipadamente se derretia na boca. O velho limitou-se a um olhar furtivo, aliás, bastante desprezível, e pegou na carta. Deu-a à mulher.
— Pede qualquer coisa. Eu nem quero ver.»

Causa agitação a presença deles ali. Todos se admiram e os antigos amigos de Akos, companheiros de folia, que prosseguem na sua desregrada combinação de comida, bebida, jogo, tabaco e outros inomináveis vícios, chamam-no para junto deles, mas o pai de Cotovia já não tem vícios. Permite-se, isso sim, passear com a mulher a ver as montras, outra coisa que não faziam sabe-se lá desde quando, e admirar todas as coisas bonitas que lá estão expostas.
Ao chegar a casa, talvez encandeados com tanta novidade, ousam mesmo voltar a colocar as três lâmpadas que faltavam no candeeiro de tecto, substituindo a penumbra economizadora por uma iluminação reconfortante, muito mais condizente com a leitura do jornal.

No dia seguinte já correm para o restaurante. Já comem dois e três pratos, e sobremesa! Akos bebe uma cerveja e alguns dias mais tarde chega a casa completamente embriagado, depois de uma bela noitada à moda antiga com os seus antigos amigos, ou então amigos, apenas. Será? Antonia acaba por comprar a malinha que a chamava da montra — e, por Deus, certo dia vão mesmo ao teatro!

«— É o velho Vajkay?
— Esse mesmo.
— Ouvi dizer que era um troglodita caturra.
— Nem pensar — disse Füzes Feri, enfático. — É um senhor muito simples e jovial.»

Sozinha em casa, certa noite, a senhora Vajkay dá consigo sentada ao piano, ao seu piano, que a filha fechara para todo o sempre quando percebera que não conseguia aprender a tocar - para ficar arrumado, pois então, a arrumação é fundamental para uma vida sã e digna. Antonia toca piano enquanto o marido se diverte com os amigos, e ambos estão felizes.

«— Nós não a amamos.
— Quem?
— Nós.
— Como podes dizer isso?
— É assim - gritou Ákos, e bateu na mesa, como antes. - Odiamo-la, detestamo-la.
— Endoideceste? — gritou a mulher, que continuava deitada na cama.»
 
Sofrem os Vajkav as consequências da sua irresponsabilidade. Sim, Cotovia aconselhara-os a comer no restaurante, mas não lhes falara em carnes fumegantes nem em sobremesas cremosas — e muito menos em álcool! Sim, tinham de sair de casa todos os dias, mas ninguém os obrigara a ir ver as montras, a gastar dinheiro em compras fúteis, a ir ao teatro! E, por Deus, quatro lâmpadas acesas ao mesmo tempo? E o piano aberto? Quem é que vai agora limpar o pó que cobrirá todas as 88 teclas?

«Não decidiram o que desejavam. Não encontravam nenhuma solução, mas, ao menos, estavam cansados. O que era alguma coisa.»

(Lembram-se d'A Livraria? «Não se importou tanto quanto esperava. Era a derrota, mas a derrota é menos mal vinda quando se está cansado.»)

Cotovia regressa a uma casa sem vestígios de piano tocado ou bilhetes de teatro. Também ela vem cansada, foi uma semana recheada de aventura e diversão na quinta dos tios, pois foi, e deita-se, finge que dorme. Pois foi.

Que cansativo é mentir.



Beijinhos a todas,
Marta

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