Diário convulso

Queridas Senhoras,

comecei a ler os diários da Ivone Mendes da Silva. Fiquei tão apanhadinha que decidi escolhê-los como tema do meu trabalho final para o seminário de Arte e Ensaio. Não faço ideia como como vou pegar no assunto, aliás, aflige-me bastante que a cada novo trabalho que tenho de escrever seja como se nunca tivesse escrito nenhum. Não sei nada, não tenho para dizer.

Apropriadamente, perante estes diários o assombro tem muito de narcisista pois parece que estou a ler sobre mim própria. As principais obsessões aparecem repetidas vezes ao longo das entradas. O gosto pelo silêncio, a ânsia em estar sozinha, a incapacidade para a conversa de circunstância e o convívio superficial, as longuíssimas caminhadas, o fascínio por casas e pela sua arquitectura, a observação do quotidiano, o registo de frases inusitadas, a passagem do tempo, o ciclo das estações, a atenção ao vento, à chuva, à luz, o efeito dos elementos sobre as plantas, as casas, as ruas; o pouco empenho nas tarefas domésticas, mas uma dedicação ao espaço, aos objectos, à forma como a luz se derrama na bancada da cozinha onde molhos de ervas aromáticas evocam sabe-se lá o quê. 

Também gosto do que não está lá. Salvo esparsas referências a umas linhas mais marcadas das mãos, a pedir generosa aplicação de creme (a cheirar a nardo), quase não há queixumes sobre o declínio do corpo, o apagar da figura. Falamos de uma senhora de 60 anos que caminha quatro horas e pouco se queixa das pernas, quanto mais agora carpir por rugas, peles caídas, desconformidades. Gosto disso. Como gosto do cuidado que põe no vestir e no calçar (aqui invejo-a, pois nunca tive essa prenda), os casacos de bom corte, as écharpes, os sapatos elegantes, os tecidos, as texturas, as cores, os padrões, os folhos, as rendas, os vários termos que há para definir o tipo de manga, a abertura do decote, o feitio de um vestido.

São frequentes as referências literárias gerais, mas poucas vezes sabemos o que Ivone está a ler naquele momento. Foi pois com espanto, quase alucinadamente, que ontem dei com a passagem acerca da leitura de Hotel, de Paulo Varela Gomes. Também já é demais, caramba. Esse livro encantou-me pelas descrições labirínticas do edifício que alberga o hotel do título, e é um dos que nunca vou esquecer.

«Queria acabar de ler Hotel e foi o que fiz. Depois semicerrei um pouco os olhos entristecida porque se me acabava aquele encanto de secretas arquitecturas e personagens labirínticas.»

p.  86, Dano e Virtude (2017, ed. Língua Morta)

Claro que posso estar a forçar a identificação e a ignorar aspectos que nos separam. O automóvel, por exemplo. A Ivone usa-o todos os dias, eu evito-o o mais possível. E faltam referências a viagens de comboio, muito longas. Quando eu puder dispor de mais tempo (talvez quando chegar à idade da Ivone), gostaria muito de fazer longas viagens de comboio.

Até para a semana,

Céu

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