Cuidados intermédios



Queridas Senhoras,

há quanto tempo. A vida corre normalmente, até que há umas interrupções. Andei muito empenhada na minha rotina, convictamente a ignorar o que aí vinha. Preocupações, nenhumas, tirando as genéricas (os salários são baixos, será que vamos manter os empregos, etc.). Fiz questão de não me preocupar, li vários livros bons, discuti bastante o filme do Marco Martins com a Beatriz Batarda, sobre os imigrantes portugueses em Inglaterra, que ainda não vi. O meu argumento era «ai, o filme deve ser muito pesado, não quero ver para já.» Estão a ver o nível de ociosidade.

Na segunda-feira, 27 de março, dei entrada no hospital Amadora-Sintra para uma operação programada, mas que andei a evitar levar a sério, ao ponto de só o ter revelado a algumas pessoas próximas poucos dias antes, e a outras, nem isso. Não sei exactamente porque fiz isso, e suspeito que o motivo de «não querer preocupar» as pessoas é um bocadinho falso. O mais perto da verdade que consigo chegar é que detesto admitir a minha fragilidade, e assumir que vou passar por limitações.

A cirurgia está agendada para terça-feira, por isso o primeiro dia é ocupado meramente com preparativos. Tirando a ansiedade crescente, não estou demasiado desconfortável. O piso de Ginecologia e Obstetrícia deste grande hospital não é luxuoso como nos privados, mas é bastante funcional, organizado e eficiente. É claro que podemos ter azares, mas estar num quarto partilhado e usar o WC cá fora não é terrível, é apenas normal.

O exército de mulheres que faz este piso funcionar é extraordinário. A máquina nunca pára, apenas se aquieta, ali entre a meia-noite e as seis da manhã, a única altura de algum silêncio, tirando os apitos dos equipamentos, na sua cadência regular ou sinistra, quando sinalizam alguma anomalia. O primeiro contingente é o das empregadas de limpeza, as tais que sabemos, mas ignoramos, se levantam de madrugada para limpar os escritórios das grandes empresas, mas também para manter imaculadas as instalações dos hospitais públicos, essenciais a quem não pode pagar cuidados de saúde privados. Ou não quer entregar o seu escasso orçamento às seguradoras e aos hospitais privados, porque confia e acredita no Serviço Nacional de Saúde, apesar dos ataques concertados para o derrubar. (Se eu estiver a misturar assuntos neste texto, tenham paciência. Sou uma senhora da nossa idade a convalescer.)

As auxiliares avançam a seguir, prestando os primeiros cuidados às pacientes acamadas. Acodem às queixas mais prementes, mas lá vão dizendo que para outras questões temos de falar com as «senhoras enfermeiras». Apesar da expressão reverente, notei solidariedade e companheirismo entre as diferentes «classes» deste batalhão, e não uma hierarquia autoritária ou de submissão. Vêm então, pelas sete da manhã, ainda as enfermeiras do turno da noite, que serão em breve substituídas pelas colegas do turno seguinte. Dificilmente alguém aqui faz um horário normal. Ou entram muito cedo, ou saem muito tarde. Estas mulheres conciliam um trabalho difícil (qualquer das funções implica tarefas de grande desgaste), em horários duros, com as complicações da sua própria vida familiar, levar os filhos à escola, tratar de idosos, etc. Sendo cuidadoras de profissão, será que são ainda mais sobrecarregadas pelas solicitações de familiares e amigos?

Quase não se veem homens. Este é um mundo de mulheres. Das jovens de 30 anos, ou mais novas, à espera do primeiro filho, às idosas que vêm já pela segunda ou terceira vez operar órgãos femininos. Ali, sinto-me estranhamente próxima de umas e outras. Tanto me vejo como a rapariga de 30 anos acabada de ser mãe, como reconheço que talvez não venha a ter a velhice saudável que supus, e possa ser aquela senhora de oitenta e muitos anos, que mantém um leve sorriso e vai espreitar à janela, com a bata não muito composta. Quase não passam homens, e mesmo que passem, os pudores, ali, perdem-se num instante. 

O pós-operatório, na terça-feira, é difícil para mim, e apenas na quarta-feira dou acordo para reconhecer as minhas companheiras na sala de Cuidados Intermédios, senhoras mais velhas do que eu. Pouco tempo antes de eu ter dado entrada no hospital, li com muito interesse um trabalho da minha filha, para Psicologia, sobre a misoginia do envelhecimento nas mulheres. O trabalho cita o famoso ensaio de Susan Sontag, O duplo padrão do avanço da idade, de 1972. «Ao entrar em cada década - depois de o choque inicial ser absorvido - um impulso cativante e desesperado de conservação ajuda muitas mulheres a esticar os limites para a década seguinte.» Estas minhas companheiras pareciam muito à vontade nas respectivas décadas (70 e 80), e nos seus corpos com as marcas da idade. Sontag diz que apenas um padrão de beleza feminino é reconhecido: o da menina. Creio que hoje já não será exactamente assim, mas é claro que muitos tabus e preconceitos ainda persistem, e nomeadamente em relação ao corpo envelhecido, às doenças «femininas» que incapacitam as mulheres de cumprir as suas supostas funções «naturais».

Já bastante recomposta, na sala de Cuidados Intermédios, sinto-me à vontade para partilhar a minha história com as restantes pacientes, naquela intimidade fugaz que se estabelece entre desconhecidos em situações de aperto. As histórias que vou ouvindo oprimem-me, é verdade, mas nem tudo é terrível o tempo inteiro e, mesmo em condições dolorosas, as pessoas encontram formas de rir e fazer rir. Às tantas, uma das senhoras abre o roupão, sem pudor, e mira o próprio corpo nu, as suas formas proporcionais e arredondadas: «Até sou jeitosinha, não sou?».

As minhas companheiras foram para casa um dia mais cedo do que eu, também desejosas de retomar as suas rotinas. Uma tem a horta para tratar, não poderá imediatamente cuidar disso, mas aos poucos irá retomar essa tarefa. A outra, por certo, foi direta tomar a bica, uma das coisas de que mais sentiu falta naquele retiro forçado. Na véspera da minha saída, deixei a sala de Cuidados Intermédios e passei uma noite menos boa num quarto com três camas onde a luz esteve quase sempre ligada. Um pequeno incómodo que procurei contornar tapando a cara com o lençol, e contando as horas para sair. Entretanto, outras pacientes chegavam, seguiam para o bloco operatório, davam entrada na sala de Cuidados Intermédios. Com outras histórias, dores e intimidades criadas em noites de insónia.


«As mulheres têm outra opção. (...) Podem deixar-se envelhecer naturalmente e sem  constrangimentos, protestando ativamente e desobedecendo às convenções que decorrem do duplo padrão desta sociedade sobre envelhecimento. Em vez de serem meninas, meninas durante tanto tempo quanto possível, que então envelhecem, humilhantemente tornando-se mulheres de meia-idade e depois, obscenamente, velhas, elas podem tornar-se mulheres muito mais cedo - e manterem-se adultas ativas, aproveitando o longo, erótico caminho de que as mulheres são capazes, por muito mais tempo. As mulheres devem permitir que os seus rostos mostrem as vidas que viveram. As mulheres devem dizer a verdade.» Susan Sontag



Nota: Sabemos como é importante fazer exames médicos regularmente, mas nem sempre cumprimos essa regra. Não descurem a vossa saúde, façam os vossos exames no tempo certo ou mais cedo, sempre que sentirem alterações ou tiverem dúvidas acerca de sintomas ou desconfortos. Não desvalorizem as vossas dores.


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