Íntimos e desconhecidos




Queridas Senhoras,

retomo as palavras do último post da Marta que afirmava “regressar a Sándor Márai é um descanso”. Ora, na última visita à biblioteca reparo neste livrinho, A Gaivota, discretamente destacado na estante das “últimas aquisições”. As palavras da Marta guiam-me os passos enquanto me aproximo furtivamente do exemplar único, antes que alguém dê por ele: “E perguntam vocês: porquê um descanso? Não é propriamente uma leitura ligeira – a linguagem é ardilosamente trabalhada; as personagens são complexas e algo obscuras; o enredo, ainda que não seja necessariamente tortuoso, nunca vai dar a um lugar previsível.”

Não sou uma leitora do escritor húngaro tão fiel como a Marta mas tenho uma forte impressão da atmosfera densa, enigmática, solene, uma conversa profunda e interminável, repleta de não ditos, de todos livros que li (lamento, Marta, mas já não sei ao certo quais foram, para além de As Velas Ardem Até ao Fim). Sei que ansiava também por esse reencontro, espicaçada pelas tuas palavras.

Com pouco mais de 150 páginas, A Gaivota lê-se num cadeirão confortável, numa sala imersa na semi-obscuridade ou talvez numa esplanada à beira-mar ou à beira-rio, com os olhos devidamente protegidos por um par de óculos escuros e largos.

O pano de fundo é uma cidade em relativa paz no meio de uma Europa em guerra. As pessoas elegantes jantam e vão à ópera. Um funcionário ministerial acaba de redigir um documento que pode alterar tudo isso. Recebe então a inesperada visita de uma jovem finlandesa, à procura de visto e trabalho, que é a imagem perfeita de outra mulher, que ele amou e se suicidou.

Que volúpia mergulhar nesta leitura! Que prazer, que lentidão, ter de abrandar de vez em quando a cadência para reler um pensamento mais elaborado, para reflectir sobre uma imagem, uma metáfora, um segredo de súbito revelado.

“Sabemos tão pouco sobre nós mesmos”, lê-se logo na primeira página, uma frase que nos interpela directamente, que nos põe a olhar por cima do ombro, um pouco embaraçados. Um homem de 45 anos constata que já não é jovem. A juventude abandonou-o.

“a juventude já se foi, há pouco ainda estava aqui nesta sala ou neste corpo. Mas agora já não está. Foi-se embora talvez ontem, ou há um ano. Se prestássemos muita atenção, tu e eu, ainda conseguiríamos ouvir os seus passos acelerados nas escadas (…).

E que dizer sobre as reflexões acerca do casal e do casamento? Como não parar para reler?

“Talvez o homem nunca esteja tão só, senão quando o destino o extrai da multidão e o designa como membro de um casal.”

O fim da juventude, que começa por assombrar o homem (quando a guerra terminar terá 50 anos, definitivamente não será jovem mas ainda poderá ver o mar), pode trazer, afinal, a paz.

“Finalmente foi-se a juventude, esse maluco feroz e infeliz, imprevisível e calculista, surpreendente e enigmático, amável e excitante. (…) Finalmente, acaba o medo de perdermos algo que a juventude, no seu vaguear, procurava de forma desequilibrada e agitada!”

E o amor?

“o tirano louco e infantil que te isola do mundo, «louco e cruel».”

Minhas queridas Senhoras, se me permitem a expressão popular, em Sándor Márai há pano para mangas.

Beijinhos a todas,

Céu





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