A vida é poética



Queridas Senhoras,

uma das primeiras coisas que pensei depois de assistir, ontem, a Paterson, o filme-poema de Jim Jarmusch sobre um motorista de autocarro que escreve poesia num caderno secreto, foi o que terá o professor Al Filreis achado e comentado sobre o filme. De certeza que houve conversa lá nos grupos de discussão, provavelmente organizaram uma sessão na Kelly Writers House. Mas não posso garantir, não consegui confirmar nada.

Não vou revelar nenhum segredo (não é esse género de filme) se disser que o poeta preferido de Paterson (nome do protagonista e da cidade) é o nosso bem conhecido William Carlos Williams, também um dos favoritos do professor Al. Emily Dickinson, Allen Ginsberg e Frank O’ Hara (Lunch Poems, lembram-se?), também por lá aparecem. De forma que este name-dropping fez-me sorrir de emoção e recordar a ternura do professor Al quando falava destes poetas.

O livro de edição limitada que a Marta me ofereceu inclui vários poemas destes autores. Mas para transmitir aquilo que o filme significa para mim, a subtil e esmagadora presença da poesia no quotidiano (uma pequena e robusta caixa de fósforos, o fundo da caneca de cerveja, a chuva que cai sobre o cabelo das raparigas), deixem-me citar um outro poema incluído da mesma obra rara de que sou orgulhosa proprietária (uma em 250):

A VIDA É POÉTICA

...e ainda não escreveste o poema
                        Jorge Luís Borges

Os anos passam. Gastaste-os, eles gastaram-te
e ainda não escreveste o poema.
Não te esqueças de que uma paisagem é mais poética
do que uma janela do outro lado da rua.
Mas dentro de casa também é poético:
um cinzeiro cheio pode assemelhar-se a um vulcão
antes de entrar em erupção,
um livro por abrir em cima de uma mesa
é um nevoeiro matinal,
a chávena de café uma gruta ou uma lagoa,
a máquina de escrever uma colónia de aves,
as palavras pedras num ermo.
Há cascatas
que ninguém ouve
mas que competem com aspiradores,
rios torrenciais
que correm por salas de estar,
margens de musgo verde
que enfrentam uma máquina de lavar louça,
um sossego que invade as casas
com cheiros do litoral
e a lufada de asa
das aves da charneca.
Numa janela do outro lado da rua
existe um farol de porcelana
que fica aceso toda a noite
para que os bêbedos não se percam
e por trás da casa há um quintal
com caixotes do lixo cinzentos,
um jornal amarelecido,
um muro adornado com caca de pombo,
uma árvore miserável,
um tordo assustado
e um gato cruel.
Tudo para nos recordar
de como a vida é poética.

Jóhann Hjálmarsson (tradução de Vasco Gato)

Beijinhos a todas,

Céu



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