Uma carta escrita

IMG_3161


Queridas Senhoras,

fomos passar uns dias à terra, como sempre fazemos no fim de Agosto. Dias irrepetíveis e únicos, embora sempre iguais (ou por isso mesmo: nessa imutabilidade reside o seu encanto). No regresso o meu pai, “agora vê se escreves uma carta à tia Odete a agradecer-lhe”. Antes que a voragem dos dias se instale, ele alerta-me para não falhar esse gesto simples, escrever uma carta bonita, em letra desenhada, uma carta que começasse:


Querida tia,


como poderemos agradecer-lhe? Como se agradece o passado, como se agradecem as memórias de infância? Como se agradece ter um sítio onde voltar, onde reconhecemos os cheiros todos? Como se agradece ter uma aldeia que é um regresso a casa, onde podemos levar os nossos filhos e criar-lhes, também a eles, memórias boas e fortes?

Como se agradece a voz doce, a ternura, a generosidade? Como se agradecem as histórias, tia? Como se agradece contar-nos sobre essa avó Amália, sua avó, minha bisavó, trisavó da Alice e do João e dos primos todos? Uma avó de todos que vive no nosso imaginário e a quem parece que a Alice foi buscar as perninhas jeitosas e bem torneadas. Se as histórias que as tias e o meu pai contam já parecem vir do fundo dos tempos, que dizer então das histórias contadas por essa avó Amália, tão viva e espirituosa, a colorir o quotidiano da aldeia com os seus ditos e “teatros”.

Como se agradece o exemplo, a paz que nos transmite do alto dos seus quase 80 anos? Como se agradece receber-nos a todos, ser o centro de união da família, a fonte e a alma dos encontros e do convívio dos irmãos e dos primos todos, três gerações já?

Sempre com gestos meigos e tempo para todos e para cada um. A nós, ou a mim, que tanto me queixo de não ter tempo, a tia dá com cada lição… Nunca terá tempo quem anda desencontrado de si próprio mas terá todo o tempo quando a vida interior é límpida e clara como a água do rio, apesar das pedras no caminho.

Como a tia Zeca, sua irmã, que enfeitiça os meus filhos falando-lhes suavemente e brincando com folhas caídas e pedras do rio. Como a sua filha Nela, que quando lhe digo que os filhos dela são os meninos mais amorosos e generosos que conheço, me desarma com a sua resposta. “Sabes, prima”, diz ela, “aqui não há muito que fazer por isso passamos muitas horas juntos, entretemos-nos muito, falamos, brincamos.” O que ela me diz, sem mais, é que passa tempo, muito tempo, com os filhos, e está, de facto, envolvida com eles, passando tudo o resto para segundo plano. E eu envergonho-me das minhas queixas, do tempo que reclamo para mim, das minhas permanentes “necessidades”.

De vós, de si, recebo lições de vida. E isso, tia, não sei como se agradece.

Receba um abraço de profundo carinho e admiração,

Céu

Beijinhos a todas,

Céu

 

Comentários

  1. [...] Senhoras, recebi ontem carta da tia Odete. A minha missiva electrónica lá acabou por chegar ao destino. A resposta veio agora, cheia de vagares, duas folhas de papel de [...]

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Conversem connosco: