Clube literário nos subúrbios



Queridas Senhoras,

cheguei há pouco da primeira sessão do recém-criado Clube Literário da Amadora na Biblioteca Municipal Piteira Santos. O início foi auspicioso, com a presença do escritor Valério Romão, acompanhado pelo seu editor João Paulo Cotrim da Abysmo.

A primeira coisa que Valério disse foi “obrigada por estarem aqui, num dia de semana”. Disse, mais à frente, que a escrita é uma maratona solitária. E depois o editor acrescentou que a leitura também pode ser solitária.

Que escritores e leitores se juntem numa improvável terça-feira à noite, numa biblioteca da Amadora, parece quase um acto subversivo, de resistência. Driblar o cansaço, as horas de trabalho, os transportes, o jantar e a louça por lavar para ir ouvir falar de literatura.

- "Vão-te contar uma história?!"

Foi o que a Alice perguntou quando expliquei que ia sair depois de jantar para ir à biblioteca ouvir um escritor.

Digo sempre que é um privilégio ter bons eventos culturais à porta de casa, seja uma peça de teatro nos Recreios da Amadora, um concerto no Parque, o festival anual de BD ou espectáculos infantis. Custa-me imaginar que uma companhia de teatro, um escritor ou outro criador vai estar a falar para uma plateia às moscas. No caso dos escritores, especialmente, estes encontros saem-lhes do pelo, por assim dizer. É divulgação, sim, mas muitas vezes para meia-dúzia de gatos pingados.

O livro em destaque foi o mais recente do autor, intitulado Da Família. Também se falou de outros - Autismo, O da Joana, Facas. Não li nenhum. Tinha ouvido falar de quase todos e lido alguns excertos. Sabia que a escrita era forte, intensa, arrasadora.

Na sessão houve uma pequena dramatização do conto A avó foi sendo esquecida, um dos 11 que compõem o livro escolhido. A família e os médicos dizem que a avó já não tem remédio, está por meses. O neto é o único que não desiste dela.

Chegando a casa, largava a mochila no quarto, metia um papo-seco com manteiga à boca e ia para o quarto da avó, de onde só saía com ela pelo braço, em direcção à casa de banho, à porta da qual ficava especado, como a guarda real do palácio, à espera de ela sair, certificando-me de que se tinha vestido adequadamente e de que lavara as mãos e, se necessário, voltava ao lavatório, onde, debaixo de uma água fria de inverno, as nossas mãos assimétricas encontravam no lavar e no ser lavado o espaço de uma rígida troca de afectos, e eu nem ousava sorrir, malgrado a felicidade sentida por poder cuidar, e até bastante razoavelmente, de alguém que não eu, e a minha avó, fendia na compreensão da empatia mais primitiva, esquecera-se da anatomia de um sorriso e o mais perto de um sorriso que lhe via acontecer no rosto traduzia-se em ela não desviar o seu olhar do meu, e falávamos de coisas indizíveis.
(...)
Aconteceu por diversas vezes deixar-me dormir no sofá, no conforto do colo da avó, e para tanto a minha mãe, como a restante família não suspeitarem de que a avó mantinha em segredo uma lucidez escondida de todos.
Da Família, pp 57-66

(Naturalmente, vieram-me as lágrimas aos olhos.)

Obrigada ao Valério Romão e longa vida ao Clube Literário da Amadora. Que este tenha sido o primeiro de muitos encontros subversivos.

Beijinhos a todas,

Céu

Comentários

  1. [...] Abril falei aqui da sessão de estreia do Clube Literário da Amadora com Valério Romão. Na altura não tinha lido [...]

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  2. [...] aqui falei sobre este escritor que foi um dos convidados do Clube Literário da Amadora. Uma coisa percebi mal tomei contacto com a escrita de VR: nunca estamos descansados. Não [...]

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