Escrever como uma mulher

Queridas Senhoras,

numa entrevista ao Ípsilon desta sexta-feira, a escritora Claudia Durastanti (n. 1984) afirma: «Fui criada por uma mãe feminista e rebelei-me contra ela. Li muitos homens na adolescência. O meu cânone foi formado pela geração beat, Steinbeck, Fitzgerald, Philip Roth, DeLillo e quando comecei a escrever e alguém disse que eu escrevia como um homem senti-o como um elogio: eu podia escrever sobre qualquer coisa.» Depois, acrescenta: «Talvez desde que Jennifer Egan apareceu com A Visita do Brutamontes (Quetzal, 2012) notei que os romances mais ousados ou audazes, ou experimentais, ou os que procuram novas formas para as coisas, eram escritos por mulheres. Gosto da Olga Tokarczuk, Rachel Cusk, Maggie Nelson, Joana Didion, Natalia Ginzburg, Vivian Gornick...»

O que me surpreendeu nesta entrevista foi o facto de uma escritora da nova geração ainda ter sentido que "escrever como um homem" é elogio. Depois fiquei a pensar nisto de livros escritos por homens e por mulheres, se ainda há diferenças (acho que sim) e porque me interessa mais, desde há uns bons tempos, ler sobretudo mulheres.

No caso Ferrante, quando se falou da hipótese de a autora ser um homem, logo um coro de vozes se levantou a dizer que era impossível um homem escrever assim. Concordo. Volto a transcrever uma passagem da novela Os Dias do Abandono que citei no blogue há quatro anos.

O nojo da amamentação, essa função animal. E, mais tarde, os vapores mornos e adocicados das papas. Por mais que me lavasse, aquele mau cheiro a mãe não me saía do corpo. Mário às vezes colava-se a mim, abraçava-me e possuía-me ensonada, também ele cansado do trabalho, sem emoção. Fazia-o, atirando-se à minha carne quase ausente, que sabia a leite, a bolachas, a farinhas, cheio de um desespero pessoal que aflorava o meu sem o reconhecer. Eu era o corpo de um incesto, pensava atordoada pelo cheiro do vomitado de Gianni, era a violação da mãe e não a posse de uma amante.

p. 205, Os Dias do Abandono in Crónicas do Mal de Amor (Relógio de Água, 2014)

Digam-me francamente: um homem podia ter escrito isto? Leiam a trilogia compilada neste volume, Crónicas do Mal de Amor, e digam-me se um homem poderia ser o autor daqueles textos.

A experiência da gravidez, da maternidade, das transformações específicas do corpo feminino, as várias formas de violência a que este corpo é sujeito ao longo da vida, desde a hipersexualização do corpo de meninas e pré-adolescentes até ao apagamento e desprezo pelo corpo envelhecido da meia-idade e da velhice, são "categorias" a que um homem dificilmente consegue aceder.

Lolita é um clássico da literatura sobre a fetichização do corpo de uma criança por um homem adulto. Tenho um misto de curiosidade e medo por Consentimento, de Vanessa Springora, que apresenta o ponto de vista inverso, isto é, como se sente uma criança de 14 anos ao transformar-se no objecto sexual de um homem de 50.

Até para a semana,

Céu

Comentários

  1. Querida Céu,

    Obrigada pelo teu texto. Espero que estejam todos bem lá em casa!
    Estou a fazer um curso que se chama "Writing Motherhood" e falamos muito sobre tudo o que descreveste.
    É engraçado que todos os meus livros favoritos são escritos por mulheres, mas nenhum deles é sobre a maternidade ou a experiência de ser mulher. O único que têm em comum é serem escritos por mulheres. Será mesmo que as mulheres escrevem de forma diferente dos homens?

    bjs

    Um beijinho, com saudades,

    Mariana

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