Pela boca morre o peixe

Queridas Senhoras,

outra vez domingo, dia de botar faladura. Na passada segunda-feira, no seu espaço de comentário no telejornal, Miguel Sousa Tavares deixou cair esta pérola: "as mulheres falam demais". O contexto da afirmação teve a ver com as declarações do presidente do Comité Olímpico que afirmou "as mulheres falam muito nas reuniões e têm dificuldade em ser concisas". Já não constitui surpresa para ninguém estes impulsos misóginos no discurso de MST, que ainda acrescentou: "numa reunião, enquanto as mulheres falam, os homens querem é despachar-se para irem almoçar uns com os outros". Como o compreendo. Eu também adoro ir almoçar só com mulheres. Falamos à vontade, e não temos de aturar piadinhas sexistas rematadas com "é só uma piada, já não se pode dizer nada". Pode, filhos, falem para aí, digam lá as bestialidades que quiserem nas vossas conversas de balneário, mas "deslarguem-nos". Deixem-nos ir almoçar sossegadas, sem ter de aturar piropos duvidosos mais a seca de conversa da bola e outros fastios igualmente desinteressantes.

Estou a ser tão idiota como o outro? É um estereótipo dizer que os homens são uns cepos que atiram bocas foleiras e só percebem de bola? Claro que é. E, no entanto, são desabafos que por vezes escapam entre amigas, no café, em casa. Eu cá, confesso, de vez em quando adoro dizer mal dos homens. E o meu marido, das mulheres. É um pequeno jogo que temos em família, uma picardia saudável que os miúdos sabem desmontar porque já alcançam mais do que isso.

Normalmente, vejo a novela da noite com os miúdos, é um momento de galhofa ao final do dia, em que sigo a escolha deles. Por estes tempos, acompanhamos "Amor, Amor" na SIC. Nesta novela, há uma personagem, interpretada por Fernando Rocha, que se caricatura a si próprio encarnando um bombeiro adepto da piadola fácil, brejeira, machista, misógina, ali a raiar o puro e simples mau-gosto. Este 'boneco' tem o papel de preencher uns minutos de 'comédia', como sempre acontece neste género de ficção em que as partes dramáticas intervalam com alívios cómicos. Acontece que a personagem é tão boçal, e o contexto que vivemos mudou tanto, que os gags resultam infelizes e sem graça. Esse tempo passou, ficou lá atrás. E se à porta das tascas ainda se mandam umas bojardas às miúdas que passam, e se a malta nos conselhos de administração ainda comenta as pernas da nova secretária ou as mamas da estagiária do marketing, a verdade é que isso já não tem ponta de piada. Lamentamos, amigos, não tem.

Aquilo que dizemos em casa, no café, em almoçaradas de amigos, não é propriamente o mesmo que vamos dizer em horário nobre no telejornal ou, vá lá, num blogue compostinho como este. Deixem-me citar aqui um comentário recente do Pedro Mexia, que é um rapaz decente com quem se pode trocar duas ou três ideias sobre livros e filmes.

«Durante décadas, se calhar séculos, tínhamos a noção de que há uma linguagem para falar com os amigos e há outra linguagem para falar em público. Com as redes sociais, perdeu-se essa noção. (...) Há conversas privadas que são horrorosas, e não há mal nenhum nisso, mas não devem ser ditas em público. E de repente, há uma série de discursos grosseiros, maldizentes, como usa André Ventura, que eram normais nas conversas privadas, e, hoje em dia, graças às redes sociais, ganharam o estatuto de isto já se pode dizer em público

MST não frequenta redes sociais, mas tem lugar cativo em telejornais e páginas de jornais de referência, o que ainda é pior. É confrangedor, é 'cringe', para usar uma expressão que há pouco tempo chamei aqui ao blogue, ouvi-lo falar no telejornal e lê-lo no Expresso a debitar inanidades sobre "as mulheres", do alto do seu posto vitalício de homem comentador. Provavelmente, ainda vai continuar por lá uns tempos. Mas fica muito difícil atribuir-lhe crédito, legitimidade e relevância para opinar seja sobre que assunto for. 

Até para a semana,

Céu

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