O filme mais longo deste Inverno

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Queridas Senhoras,

fui ver Sono de Inverno, o filme turco que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, com mais de três horas de duração. Calma, não tive um súbito ataque de intelectualidade aguda. Tive um “furo”, o filme surgiu no feed, carregado de louvores, começava a uma hora conveniente e passava numa sala simpática (o Nimas).

Só quando já estou sentada no meu lugar, à espera do início da sessão, a ler uma crítica, descubro que tem mais de três horas. Salto na cadeira. Pânico. Nunca vou ao cinema ver filmes com três horas. Nunca tenho três horas livres.

O crítico (Jorge Mourinha, do Público) pedia ao espectador que tivesse “paciência” (pudera!), que deveria dar ao filme toda a sua atenção, para que este então se revelasse em toda a sua magnitude. A paciência do espectador atento e dedicado seria sobejamente recompensada. Passado o choque inicial, e com estas instruções em mente, instalo-me então para visionar pelo menos duas horas. Depois logo se vê.

No centro da história está Aydin, o proprietário de um pequeno hotel escavado nas rochas, na zona montanhosa da Anatólia, na Turquia. Ele é um actor reformado que herdou o hotel e mais algumas propriedades, incluindo casas arrendadas por gente pobre que não consegue pagar a renda. Com ele vivem a irmã, divorciada e desocupada, e a jovem mulher que engana o tédio com obras de caridade. Outras personagens gravitam em volta deste trio: o empregado do hotel, o velho amigo do actor que vive numa aldeia isolada, a família de inquilinos faltosos, constituída por um pai problemático, um irmão que tenta equilibrar as coisas, uma mulher submissa, uma criança revoltada e até uma velha avó que só quer a sua TV de volta.

À medida que os rigores do Inverno se intensificam, e a região se torna mais isolada, com menos turistas e mais estradas cortadas, agudizam-se os conflitos entre toda aquela gente.

De início, Aydin parece imune à paralisação gelada que todos contamina. Ele tem o seu escritório quente e confortável, onde escreve crónicas semanais para o jornal local que o fazem sentir-se bem consigo próprio. Recebe cartas dos leitores, elogios interesseiros que lhe alimentam o ego e o próximo texto. Além disso, ele tem um plano a longo prazo: escrever a história do teatro turco.

Sentada no sofá atrás dele, a irmã atazana-o diariamente com comentários depreciativos, diz-lhe que os artigos não são tão assim bons, são vagos, pouco entendidos, fracos. Esta irmã teoriza também sobre a vantagem de resistir ao mal. Se eu não me defender do mal, se não contra-atacar, talvez o malfeitor caia em si de vergonha e se retraia. É assim que ela que ela se martiriza pelo casamento falhado, torturando-se por não ter resistido a um marido abusador.

Aydin e Nihal, a sua jovem mulher, partilham o mesmo tecto mas pouco mais. Cada um tem os seus assuntos e estes raramente se tocam. Aydin ainda faz por envolvê-la, ou assim parece, mas ela está irremediavelmente distante e vazia. A única coisa que a preenche são as suas obras de caridade. Quando o marido a acusa de ingenuidade e de falta de capacidades para essa tarefa, o frágil mundo de Nihal desaba.

Não sei se vos estou a aborrecer. Afinal, são mais três horas de filme. O que se passa ao longo dos 196 minutos são sobretudo diálogos, conversas. Não é daqueles filmes que mostram a paisagem minutos seguidos sem nada acontecer. Não. As coisas acontecem e não tão devagar como isso. Mas sobretudo fala-se. Sobretudo a dois. O Aydin com a irmã. Ele com a mulher. Elas as duas. Longos diálogos que fixam o filme na mesma cena durante vários minutos.

Quase todas as personagens manifestam a dada altura o desejo de sair dali, daquele cu de Judas, e ir para Istambul onde têm coisas a tratar ou uma vida nova para viver. Mas ninguém chega a ir a lado nenhum.

É um filme exemplar, isso não há dúvida. Concordo que é preciso paciência. E tempo, muito tempo disponível. A minha recomendação: vejam-no no vosso sofá, numa longa tarde ou noite de Inverno, com uma chávena de chá quente entre as mãos (eles passam a vida a beber chá), um prato de biscoitos e uma boa manta. Darão o tempo por bem empregue.

(É claro que não saí da sala, fiquei até ao fim. Ninguém saiu e, pareceu-me, todos prestaram muita atenção).

Beijinhos a todas,

Céu

Comentários

  1. Soou-me tão bem! Faz lembrar os livros do Cossery, já leste? Tenho todos, posso enviar para a próxima.

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  2. Não li nem sei quem é. Mas por dizeres que te faz lembrar os livros de alguém, lembrei-me dos livros de outro autor que também têm longas conversas em salas quentes de sítios frios: Sándor Mária.

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  3. Tenho de ir ver (ao cinema, que estes filmes têm de ser vistos no cinema). Vi o "Climas" do mesmo realizador e adorei. Aliás, mantenho o, relativamente, secreto desejo de passar uns tempos na Turquia por causa dele.
    P.S As pessoas que vêm filmes de três horas (ou mais) não são intelectuais. Quer dizer, algumas podem ser, mas não é por verem filmes longos.

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  4. Ora Calita, deixemo-nos de coisas. Quem é que vai ao Nimas ver estes filmes? Não sei se são intelectuais mas quem são então? Quem é este público que ficou ali mais de três horas quietinho na cadeira? Eu era a mais irrequieta, custa-me verdadeiramente estar tanto tempo sentada. Não sei se eram intelectuais. Era uma mistura de hipsters, claro, em minoria, com uma maioria de aristocracia, aquela velha guarda das Avenidas Novas.

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