Há qualquer coisa que devíamos dizer

Queridas Senhoras,

«Em Butcher's Crossing, uma puta é uma parte necessária da economia. Um homem tem de ter mais alguma coisa além de álcool e comida onde gastar o dinheiro, e alguma coisa que o traga de volta à vila depois de ter andado lá por fora. Em Butcher's Crossing, uma puta pode ser esquisita e escolher os clientes e mesmo assim ganhar bom dinheiro e isso torna-a quase respeitável.»

Lá por fora significa a caçar búfalos (que, na verdade, não são búfalos, mas o nome pegou; são bisontes americanos). Will Andrews abandonou Harvard a meio do terceiro ano e rumou para Oeste em busca da aventura de uma vida. É encaminhado por McDonald, um experiente comerciante de peles, para Miller, um talentoso caçador com uma obsessão: chegar ao sítio recôndito onde se abriga a última grande manada. E assim começa a história que, passada em terra firme e poeirenta, tantas vezes me lembrou Moby Dick.

«Cercado de campo e arvoredo, não era nada; via tudo; circulava por ele a corrente de alguma força indefinível. E de uma maneira que não lograva sentir na King's Chapel, nas salas de aula ou nas ruas de Cambridge, era parte integrante de Deus, livre e incontido.»

Miller encontra em Andrews a sede de que precisa para conseguir financiar a expedição que há muito sonha fazer; não procura vingança, qual Capitão Ahab, mas ainda assim desdenhará muita e valiosa caça pelo caminho, e correrá muitos riscos (pondo, inevitavelmente, em risco os três homens que o acompanham), para conseguir chegar ao filão que só ele sabe onde está. Ainda assim, Andrews está ansioso por largar os últimos vestígios de civilização e abraçar o desconhecido:

«Pensava nos três ou quatro dias que ainda teria de esperar naquele lugar até Miller e os outros estarem prontos. Pensava em como poderia passá-los e perguntava a si mesmo como poderia comprimi-los num pedaço de tempo amarrotado que pudesse deitar fora.»

A viagem prossegue e as condições agravam-se. Chega a faltar água para homens e animais e seca-se-nos a boca a ler. John Williams (que descobri com o magnífico Stoner) é um descritor exímio, um estudioso irrepreensível, e ele vai colocar-nos, aos seus leitores, lá, no faroeste de 1870, com um detalhe arrepiante. Quem quiser, aprende nestas páginas a fabricar balas, a retirar a pele a búfalos, a sobreviver no meio do vasto nada a um gelado inverno meses a fio, a encontrar consolo no silêncio, a tolerar a dor e o desconforto a níveis quase inverosímeis.

Quando o grupo atinge o objectivo, dedica-se a caçar e a esfolar o maior número de bisontes possível, cujas peles terão que ser transportadas de volta na carroça que os acompanha. E corre tudo bem, até começar a correr tudo mal.

«- A juventude - observou desdenhosamente McDonald. - Julgam sempre que há qualquer coisa a descobrir.
 - É verdade, senhor.
 - Pois bem, não há nada - tornou McDonald. - Uma pessoa nasce, é amamentada na mentira, é desmamada na mentira e aprende mentiras mais elaboradas na escola. Vive toda a vida no meio da mentira e mais tarde, porventura quando está prestes a morrer, descobre que não há nada, nada a não ser ela própria e o que podia ter feito. Só que não o fez, porque as mentiras lhe disseram que havia outra coisa. Nessa altura percebe que podia ter todo o mundo, porque é a única pessoa que sabe o segredo; só que então é tarde demais.» 

Will abandona Butcher's Crossing sem destino, pois a experiência modifica-o tanto que não saberia como regressar a casa. Parte marcado pelo vazio que viu instalar-se em demasiados olhares.

«Temos qualquer coisa a dizer uns aos outros, pensou confusamente Andrews, mas não sabemos o que é; há qualquer coisa que devíamos dizer.»


Beijinhos,

Marta

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