Os contos do fim


Queridas Senhoras,

apaixonei-me pela escrita de Paulo Varela Gomes (1952-2016) ao ler Ouro e Cinza, um livro que reúne crónicas e textos publicados na imprensa. A prosa elegante e culta de PVG é ao mesmo tempo fascinante e próxima, como se tivéssemos a sorte de encontrar, numa festa ou reunião de amigos, um conversador brilhante e atento. Tudo nas suas palavras denota uma cultura lenta e profunda, sedimentada em longas leituras, viagens e convívios. É alguém que queremos continuar a escutar pela noite fora, enquanto as vozes vão esmorecendo e os convidados se vão retirando.

Depois li o romance Hotel sobre o qual escrevi aqui que confirmou e superou todas as expectativas criadas pela leitura das crónicas. Em 2015 PVG publicou na revista Granta um testemunho belo e doloroso sobre a vida face à morte: Morrer é mais difícil do que parece. PVG descreve os seus dias de luta contra o cancro, a ideia persistente de suicídio, a descoberta de Deus, o aroma redentor da hortelã-pimenta.

Cheguei agora ao livro de contos póstumos, A Guerra de Samuel e outros contos, publicado este ano. São oito contos, o que dá nome ao livro e outros sete (“contos não ortodoxos”), que abordam temáticas distópicas, místicas, metafísicas, religiosas, sobrenaturais. Lidos em articulação com o texto da Granta (e com a sua restante obra), revelam as preocupações do autor com questões ambientalistas e existencialistas, nomeadamente a relação do Homem com os animais e as plantas. Vários contos descrevem cenários apocalípticos, guerras do fim do mundo e do fim dos tempos. No primeiro conto, Samuel é o heróico profeta e ex-militar que chefia a resistência ao mal que grassa na Europa, devastada por todos os «sinais de decadência».

«A ressurreição da senhora professora» é um belíssimo conto de amor para além da morte. N’ «A baleia» uma mulher obesa vítima desde a infância de toda a espécie de injúrias corre até à praia da Figueira para se unir a uma baleia que deu à costa. Em «O Jardim do Éden» uma mulher acede às coordenadas do paraíso. Dos conflitos e dissidências numa comunidade ecológica trata «Apoptose», enquanto «Gnose» segue o percurso de uma misteriosa jovem que inventa a internet. De grande beleza e delicadeza, «Relicário» revela o amor profundo de um casal, feito de detalhes, rituais e pequenos objectos carregados de memórias. O arquipélago dos Açores surge como lugar de redenção e renascimento após o fim do mundo em «Até ao Fim».

Paulo Varela Gomes é homenageado este domingo, dia 11, na Feira do Livro, com o lançamento desta última obra. A apresentação estará a cargo de António Guerreiro, uma das minhas leituras habituais que ainda não tive oportunidade de escutar ao vivo. Hoje mesmo, na sua crónica semanal e no estilo habitual, AG fala do «estado de exasperação» a que feira chegou. Compreendo a rabugice de AG, que questiona: «que leitores se interessam pelos suplementos culturais que existem? Que leitores se precipitam para um romance do qual o crítico – e não estou a inventar - disse que era “sobre a condição humana”?»

Caro AG, eu, eu! Nunca perco um texto seu e foi em boa parte por sua causa que comecei a ler PVG. Sim, é tudo uma feira e uma confusão, mas cá nos vamos entendendo.

Beijinhos a todas,

Céu

P.S. Só depois de ter escrito este texto reparei que, na mesma edição do Ipsilon de hoje, António Guerreiro assina a recensão sobre A Guerra de Samuel (pp. 28/29).

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