Sangue, sonho e sofrimento



Queridas Senhoras,

A ordem de leituras previamente anunciada foi alterada e desde já apresento as minhas desculpas. Mas foi por uma boa causa e, além disso, faz parte dos direitos inalienáveis do leitor interromper um livro para começar a ler outro, etc.

Na mencionada estante de “últimas aquisições” da Biblioteca da Amadora apareceu A Vegetariana, da sul-coreana Han Kang, vencedor do Man Booker International Prize em 2016. Na altura dei conta que o romance foi muito aclamado. Registei que se tratava da odisseia uma mulher que deixava de comer carne e, de alguma forma, restringi a história ao universo da sociologia alimentar, por assim dizer. Ou seja, nada me preparou para o que o romance de facto é. Um objecto estranho, violento e poético.

A primeira página agarrou-me completamente. Mas não indicia o que aí vem. Parece mais um daqueles romances modernos que esmiúçam as infelicidades e perversidades do casamento. Embora a violência destas palavras me devesse ter posto de sobreaviso.

"Antes de a minha mulher se ter tornado vegetariana, sempre pensei nela como alguém que não tinha rigorosamente nada de especial. Para dizer a verdade, quando nos conhecemos, nem sequer me senti atraído por ela. Altura mediana; cabelo cortado a direito, nem curto nem comprido; pele amarelada, com um aspeto pouco saudável; maçãs do rosto ligeiramente pronunciadas; o seu ar tímido e frágil disse-me tudo o que precisava de saber. Quando se aproximou da mesa a que eu já estava sentado, não consegui deixar de reparar nos sapatos que trazia – os sapatos pretos mais vulgares que se possa imaginar. E aquele andar – nem apressado nem vagaroso, nem firme nem afetado. No entanto, embora não tivesse nada de muito atraente, nada tinha também de repulsivo e, por isso, não havia motivo para que não nos casássemos. A personalidade passiva dessa mulher em quem eu não conseguia detetar frescura, nem encanto, nem nada de particularmente refinado, servia-me na perfeição."

Um dia, esta mulher anódina tem um sonho e a partir daí decide deixar de comer carne. Esta circunstância vai desencadear inimagináveis violências. Pelas vozes do marido, da mulher, do cunhado e da irmã, mergulharemos cada vez mais fundo num quotidiano de repressões, abusos, angústias, dores profundas, incapacidades, impossibilidades.

"A sensação de que, na realidade, nunca vivera neste mundo apanhou-a de surpresa. Era um facto. Nunca vivera. Mesmo em criança, até onde conseguia lembrar-se, a única coisa que fizera fora aguentar."(pp. 168)

Sustenham a respiração. A Vegetariana faz doer as costelas.

Beijinhos a todas,

Céu

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