O corpo devorado

história do novo nome_GRÁFICA

Queridas Senhoras,

prossigo a leitura da saga A Amiga Genial, da escritora-mistério Elena Ferrante, sobre a vida de duas amigas num bairro pobre de Nápoles. O segundo volume, História do Novo Nome, retoma o fio narrativo no ponto exacto onde o primeiro terminou. Vamos encontrar as duas amigas, Lila e Lenú, à beira dos 17 anos, a primeira já casada, a segunda tentando prosseguir os estudos.

O melhor de Elena Ferrante (tanto na saga como em Crónicas do Mal de Amor, colectânea de três histórias) são os murros no estômago que levamos no meio da narrativa, quando surgem descrições das vidas de mulheres, dos seus sofrimentos específicos, físicos, viscerais, ancestrais, quase sempre infligidos ou causados pelos homens.

Nesta passagem de História do Novo Nome, Elena (Lenú) tem quase 17 anos mas surpreende-se a olhar pela primeira vez para as mulheres mais velhas do seu bairro. Até então via somente as raparigas como ela. (“Sem nenhuma razão evidente, comecei a olhar com atenção para as mulheres que encontrei na rua larga.”)
«Mas naquela ocasião vi nitidamente as mães de família do bairro velho. Eram nervosas, eram submissas. Iam caladas, de lábios apertados, ombros descaídos, ou gritavam insultos terríveis aos filhos que as atormentavam. Arrastavam-se magríssimas, com os olhos e as faces encovadas, ou com traseiros largos, artelhos inchados, peitos pesados, com os sacos das compras, e as crianças pequenas agarradas às saias a pedirem colo. E, santo Deus, tinham mais dez, no máximo mais 20 anos do que eu. No entanto pareciam ter perdido os traços femininos tão importantes para nós, raparigas, e que evidenciávamos com a roupa, com a maquilhagem. Tinham sido devoradas pelo corpo dos maridos, dos pais, dos irmãos, aos quais acabavam sempre por se assemelhar, ou pelos trabalhos, ou pela chegada da velhice, da doença. Quando principiava essa transformação? Com os trabalhos domésticos? Com as gravidezes? Com as pauladas?»
História do Novo Nome, p. 83

 

Em tudo o que li de Elena Ferrante encontrei várias passagens tão ou mais violentas do que esta. O sofrimento está sempre ligado ao corpo. Um corpo que é sucessivamente objecto de desejo, cobiça, abuso, descarga, raiva e por aí fora. Até ao esquecimento,  ao desprezo, ao abandono.

Beijinhos a todas,

Céu

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