O pai só estudou até à segunda classe mas não há nada que não saiba sobre o livro da vida que, segundo o pai, é o que mais ensina.
(pp. 11)
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Queridas Senhoras,
deve ter sido pelo início dos anos 80 que ouvi pela primeira vez, com discernimento para perguntar o que queria dizer, a palavra ‘retornado’. Não me recordo da resposta exacta mas terá sido alguma coisa que arrumei junto de outras palavras que ia ouvindo, aqui e ali. Guerra Colonial (o pai esteve na Guiné) Salazar, colónias, Angola, Moçambique, 25 de Abril, Mário Soares, descolonização. Palavras que são como peças de um puzzle que se foi formando mas um puzzle com várias faces, como fui percebendo aos poucos. Afinal, nem toda a gente celebrava o 25 de Abril. Afinal, para muitos, Mário Soares não era um herói mas um criminoso.
Não sei por volta de que idade terei completado o puzzle na minha cabeça. Sei que me faltava ler O Retorno de Dulce Maria Cardoso. (O romance foi, entretanto, incluído no Plano Nacional de Leitura para o ensino secundário, o que faz mais sentido, provavelmente, do que para qualquer outra obra da literatura portuguesa recente).
Há um paralelismo com os livros de Isabela Figueiredo (Caderno de Memórias Coloniais, A Gorda, dos quais só li este último) que nos traz recordações de Moçambique. O Retorno centra-se na história de Rui, 15 anos no Verão Quente de 1975, retornado de Angola com a mãe Glória e a irmã Milucha. O pai ficou retido.
Ao longo de 267 páginas (li a edição de bolso) o relato pela voz do adolescente que se faz homem à nossa frente não nos deixa respirar um minuto sequer. Nem quando observamos o mar da varanda do hotel de 5 estrelas no Estoril onde a família foi provisoriamente instalada, com muitas outras famílias, numa convivência forçada de misérias, raivas e festas ocasionais.
Então é isto a metrópole.
Tanto mar e afinal uma sensação tão grande de acanhamento. As roupas que trouxeram não servem porque, além de frescas, são coloridas e aqui todos se cobrem de castanho e cinzento, a cara fechada e hostil. A professora de Matemática lá para o fundo: "um dos retornados que responda."
O pai ficou retido em Angola mas são as suas palavras, as grandes tiradas do ‘livro da vida’, que vão sustentando a esperança de Rui em conseguir assegurar a sobrevivência e a sanidade da família.
Os rapazes não têm saudades, isso é coisa para as chatas das raparigas, mas às escondidas, na vida secreta que constrói para se aguentar e para poder pensar, Rui tem saudades do tempo em que só pensava numa coisa de cada vez. O tempo das tardes eternas a fumar cigarros com os amigos.
Beijinhos a todas,
Céu
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