Este país não é para mulheres


Queridas Senhoras,

a Céu despertou a minha atenção para Kazuo Ishiguro e eu andei a pesquisar até ter escolhido este livro para me iniciar na obra do escritor. Escolhi-o por ser considerado o mais japonês dos seus livros. Embora tenha escrito o original em inglês, Ishiguro procurou reflectir na sua segunda língua as sonoridades, as pausas, a elegância da primeira. E sente-se. Quando descobri a obra de Kawabata, aos vinte e poucos anos, fiquei tão fascinada por aquela língua, aquela linguagem, escondidas por detrás da tradução, que cheguei a pensar em aprender japonês. Mas foi apenas uma ideia, uma das mil e uma ideias que fui tendo.

Esta edição comemora os 30 anos da primeira e inclui um prefácio de Ishiguro que, entre outras coisas interessantes, nos revela como o autor credita a Proust a sua viragem da escrita de argumentos para os romances. 

«If I could go from one passage to the next according to the narrator's thought associations and drifting memories, I could compose almost in the way an abstract painter might choose to place shapes and colours around a canvas.»

Aprendi muito com este livro. Sabem aquela coisa que se diz sobre a História ser sempre escrita do ponto de vista dos vencedores? An Artist of The Floating World passa-se no Japão pós-Segunda Guerra Mundial, durante a ocupação americana. O narrador é Masuji Ono, um reconhecido pintor já reformado que ocupa os dias a cuidar do jardim, a fazer reparações na casa da família, parcialmente danificada durante a guerra, e a fazer também uma espécie de reparações nas suas memórias do passado. Tudo por causa das negociações em torno do possível casamento de uma das suas duas filhas. Só lhe restam as duas filhas. Teve um terceiro filho que morreu na guerra; e a sua mulher também foi vítima do conflito. 

Então, as famílias de Ono e do pretendente da sua filha Noriko então em fase activa de avaliação mútua. Qualquer deslize em qualquer detalhe no passado de qualquer membro de uma das famílias, se descoberto pelo outro lado, porá o futuro casamento em risco. E Noriko já não é assim tão nova. E já viu cair por terra uma negociação anterior. Por isso, o pai (muito pressionado por Setsuko, a filha casada) ocupa o seu tempo a falar com pessoas do passado e a tentar apurar se alguma delas terá mal a dizer dele. É que ele, em tempos, pegou no pincel e expressou opiniões politicamente fortes, à época consideradas úteis e corajosas, mas hoje mal vistas.

«But, Ono, there are things we should be both proud of. Never mind what people today are all saying. Before long, a few more years, and the likes of us will be able to hold our heads high about what we tried to do. I simply hope I live as long as that. It's my wish to see my life's efforts vindicated.»

Os diálogos são longos (mesmo entre o protagonista e o seu pequeno neto), lentos, cuidados, sujeitos a um protocolo subliminar que Ishiguro consegue, de facto, transmitir-nos mesmo usando a língua inglesa. As introspecções e as recordações também. E isso faz com que eu, leitora, me sinta por vezes lost in translation. Ou seja: será que eu estou mesmo a perceber o que se está a passar? E os silêncios, as anuências, as pausas, quererão dizer aquilo que eu penso que querem dizer?

No final, as negociações do casamento de Noriko correm bem e tudo acaba bem. Mas fica-me a impressão de que até Ono se perdeu um pouco na interpretação das palavras da filha mais velha e do genro, ou nas rememorações, e talvez a sua pegada política não seja de todo tão acentuada como ele crê. 
Afinal, está (quase) tudo a mudar. Quase. As mulheres continuam no mesmo lugar, aquele que lhes for imposto. Os destroços da guerra vão sendo lentamente substituídos por novas construções, surgem arranha-céus no lugar dos antigos bares iluminados por lanternas onde os artistas se juntavam e se exaltavam os prazeres da vida (the floating world), e o neto de Ono brinca aos cowboys e come espinafres para ser forte como o Popeye. 

«I smiled to myself as I watched these young office workers from my bench. Of course, at times, when I remember those brightly-lit bars and all those people gathered beneath the lamps, laughing a little more boisterously perhaps than those young men yesterday, but with much the same good-heartedness, I feel a certain nostalgia for the past and the discrict as it used to be. But to see how our city has been rebuilt, how things have recovered so rapidly over these years, fills me with genuine gladness. Our nation, it seems, whatever mistakes it may have made, has now another chance to make a better go of things. One can only wish these young people well.»

Cá entre nós, Senhoras, também os jovens japoneses de hoje precisam que lhes desejemos boa sorte. Sobretudo, as mulheres, cujas aspirações cabem cada vez menos no apertadíssimo modelo patriarcal vigente. O que será de um país cuja população decresce vertiginosamente porque os seus habitantes em idade reprodutiva não estão interessados no amor nem no sexo?

Beijinhos,
Marta

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