O salário discreto da burguesia

Queridas Senhoras,

a verdade é que estou baralhada. Não sei se sou privilegiada, burguesa ou remediada. Para pôr desde já os pontos nos is, este é um agregado familiar de quatro pessoas que tem de rendimento mensal pouco mais de 2000 euros. Como saberão, não se trata de um casal jovem, mas sim à beira dos 50 anos, que já trabalha há vinte e tal. Nada nos falta, felizmente, e muitas vezes me sinto privilegiada. Por exemplo, estamos em teletrabalho e é frequente irmos buscar almoço fora, porque não temos tempo nem pachorra para cozinhar duas vezes por dia para quatro pessoas. Vamos ao café da esquina, cada dose a seis euros, duas esticam para quatro, na boa. Até porque a pessoa em casa come mais e não é preciso encher o prato. Também nunca mais fomos a restaurantes por isso uma coisa compensa a outra. Sim, porque como privilegiados que somos de vez em quando vamos almoçar ou jantar fora. Não sei se estou a ser obsessiva a falar de comida, mas o nosso privilégio é muito isto, tudo gira à volta das refeições.

O pensamento insidioso que se vem alastrando é que tudo é privilégio, e não direito. E eu sinto que vou interiorizando esse discurso. As janelas da minha casa dão para uma praceta, razoavelmente limpa e arranjada, com árvores que agora estão floridas. Tem sido um privilégio abrir a janela todas as manhãs e olhar as árvores vestidas de pequeninas flores brancas. A pessoa vive num T3 sem varanda na Reboleira, mas sente-se na Quinta da Marinha. Até cheira a maresia, não ouvem as gaivotas? O céu está azul, o ar está limpo, e não é um privilégio poder respirar? Não estou a ser irónica. Como contei aqui há poucas semanas, fui atropelada e tive covid (com dois anos de intervalo), e estas coisas marcam. É um privilégio estar viva, inteira, intacta, ter ar para respirar, estrada para andar, pernas para correr.

Tudo é privilégio, sim. Temos uma casa cheia de livros e se precisar de mais tenho a biblioteca à porta. Ainda no outro dia a miúda precisou de um livro para Filosofia, foi só enviar um e-mail à Biblioteca e no mesmo dia fui buscar o livro. Se isto não é privilégio, não sei. Mas não vamos só à biblioteca. Também compramos livros, e fazemos questão de os comprar nas livrarias porque somos daqueles privilegiados que têm tempo para gastar a pensar nisso, que as cidades são melhores com livrarias, que é bom visitá-las com os miúdos, assim como visitar museus e monumentos e passear por este país, gostamos tanto de fazer isso. E fazemo-lo muitas vezes, felizmente o orçamento dos 2000 mensais vai dando para umas voltas, até porque sabemos que a família ajuda sempre, com refeições (outra vez a comida!), roupa para os miúdos, presentes vários. A família pode ajudar, outro privilégio. Caramba, já me sinto filha do Ricardo Salgado.

Temos comida, temos ar, temos livros, temos filmes (um só aparelho de televisão, atenção, não é que não pudéssemos ter mais, mas como bons privilegiados achamos super possidónio encher a casa de televisores). Só não temos garantia de nada. O salário pode baixar ainda mais, o emprego pode ir à vida, e aos 50 anos quero ver quem é que arranja emprego. Só se for alguém muito privilegiado.

Até para a semana,

Céu

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