Olive

Queridas Senhoras,

se ouço dizer de um filme ou de um livro que "não acontece nada", fico logo interessada. Na crónica do Expresso de 25 de junho («Ontologia Portuguesa»), Tolentino de Mendonça fala da importância da obra de Miguel Esteves Cardoso para compreender o Portugal contemporâneo, e destaca o facto bem conhecido de MEC se interessar por tudo. Visto de perto ou com atenção suficiente, tudo é interessante. Não é o que se costuma dizer?

Vem isto a propósito do romance Olive Kitteridge, de Elizabeth Strout, que a Marta mencionou num post, e eu comecei imediatamente a ler, sobretudo depois de ela me dizer (perdoa a inconfidência, Marta) «é uma pancada de vida normal, banal, cheia de desolações». Ainda por cima «muito bem traduzido pela Tânia Ganho». Ora, se conhecem a Marta, sabem que as suas recomendações e a sua avaliação são do mais certeiro que pode haver.

Com este livro, acontece algo parecido com o que se passa na trilogia da Rachel Cusk. As duas escritoras parecem ter inventado um género novo. Em Cusk, o fluxo narrativo contínuo de conversas com estranhos, amigos, conhecidos, numa sucessão de encontros planeados ou fortuitos. Strout, por sua vez, constrói um romance composto por episódios mais ou menos independentes em que o elo de ligação é Olive Kitteridge, uma professora de Matemática reformada, casada com Henry, o farmacêutico de uma pequena cidade costeira do Maine.

O meu gosto por narrativas onde não acontece nada (ou seja, acontece tudo), como a recente maratona dos diários de Ivone Mendes da Silva, tem a ver com o meu interesse obsessivo pela banalidade e a capacidade de resgatarmos e identificarmos nessa banalidade (através da atenção, do pensamento, da reflexão, da escrita), o que de mais precioso nos é dado a viver. Como saberemos reconhecer esses momentos? É preciso que o tempo passe por eles? Conseguimos ser tão atentos e conscientes ao ponto de os percebermos enquanto estamos a vivê-los? O melhor da vida é variedade. O melhor da vida é repetição. O melhor da vida é olhar para trás. O melhor da vida é olhar para a frente. O melhor da vida é a infância. O melhor da vida é maturidade. O melhor da vida são as pequenas alegrias. O melhor da vida são os grandes acontecimentos. O melhor da vida é estar com pessoas. O melhor da vida é a paz interior.

Aviso que a partir daqui há spoilers do livro. Entretanto soube que a obra foi adaptada a mini-série com Frances McDormand no papel de Olive. E não imagino ninguém melhor para encarnar a grande e áspera professora de Matemática.

No episódio intitulado «Tulipas», Henry, o marido de Olive, sofre um derrame cerebral e fica incapacitado. Naturalmente, a vida de Olive fica virada do avesso, as suas reflexões são íntimas e profundas, levando-a a investigar e questionar toda a sua vida. Neste excerto, recorda um ritual trivial do passado, quando ela e o marido iam ver os jogos de futebol do filho, que aliás nunca jogou grande coisa.

Havia beleza naquele ar outonal, nos jovens corpos suados com as pernas enlameadas, naqueles jovens fortes que se atiravam para a frente, a fim de cortarem a bola com a cabeça; e havia beleza nos aplausos quando alguém marcava um golo, quando o guarda-redes caía de joelhos. Certas vezes — recordava-se bem disso —, Henry pegava-lhe na mão quando regressavam a casa, pessoas maduras, no auge da vida. Tinham sabido aproveitar tranquilamente aqueles momentos felizes? Era provável que não. Regra geral, quando as pessoas vivem a vida, não têm consciência suficiente de que a estão a viver. Mas agora tinha essa recordação de algo saudável e puro. Talvez fosse a coisa mais pura que tinha, aqueles momentos no campo de futebol, pois tinha outras recordações que não eram tão puras. p. 178 

Até para a semana,

Céu

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