"Arkangel"
Nota: contém spoilers.
Queridas Senhoras,
Acabei de ver todos os episódios da série Black Mirror, ao ritmo tranquilo de um por dia, o que dá para digerir cada história. Quase todas se baseiam na mesma premissa: há uma qualquer tecnologia que, a princípio, não parece totalmente maléfica mas depois se transforma numa coisa aberrante, indigna, destruidora, mortal. Como sou bastante leiga em tecnologia, em vários episódios questionei-me se "aquilo" já existe ou não. E se não existe, parece não faltar muito. É apenas uma questão de grau, de desenvolvimento, de upgrade. As histórias podem agrupar-se em quatro ou cinco temáticas genéricas sobre desejos e medos tão contemporâneos como intemporais. O que é que aquelas personagens desejam e o que temem? Querem reconhecimento, segurança, amor. Temem a humilhação, a traição, o esquecimento, a dor, a morte.
Cada um terá a sua leitura da série e encontrará ecos particulares em determinadas histórias. Deixem-me destacar algumas. Em "Arcanjo", uma mãe adquire um dispositivo de controlo parental na sequência de um curto desaparecimento da filha de dois anos. Já existem coisas semelhantes, certo? Este dispositivo vai um pouco mais além. Permite ver o que a criança vê a cada momento. E um pouquinho mais ainda. Permite filtrar o que ela vê. Não em ecrãs, mas na vida real. Esbate a imagem de tudo o que provoca a aceleração do pulso, como um cão a ladrar ameaçadoramente ou um joelho esfolado a jorrar sangue. Não é difícil prever o que acontece quando a menina chega à adolescência e a mãe não resiste a ir buscar o antigo dispositivo que encafuou no sótão no fim da infância. A paranóia do controlo e da vigilância fez soar algumas campainhas, sim.
A temática dos relacionamentos amorosos ocupa vários episódios. Em "Toda a tua história" é também o impulso da vigilância que é levado ao extremo com consequências previsíveis. Mais cáustico é "Hang the DJ", em que a procura de parceiro foi delegada numa sofisticada app que determina as relações a ter, e durante quanto tempo, na busca pelo par ideal, transformando o amor num inferno de convivência forçada e sexo mecânico, com parceiros designados pelo algoritmo.
Gostaríamos mesmo de continuar em contacto com os nossos entes queridos para além da morte? A protagonista de "Volto já" começa por subscrever um serviço que lhe permite trocar mensagens e falar ao telefone com o marido morto. Pouco depois, não resiste a subscrever o upgrade e recebe o próprio marido numa embalagem hermética entregue à porta. Tem tudo para correr mal.
Sistema de crédito social, já ouviram falar? Parece que já está em vigor na China. "Em queda livre", episódio antológico, relata o abismo a que desce uma mulher na sua busca de créditos para aumentar a sua pontuação e ganhar o direito a comprar casa num bairro chique. Não basta ter "likes" e seguidores, é preciso relacionar-se com as pessoas certas. Não foi sempre assim?
O que estamos dispostos a fazer para preservar o nosso modo de vida e impedir que o mesmo seja destruído por um erro do passado? "Crocodilo" é, talvez, o episódio mais sinistro, em que uma arquitecta de sucesso, mãe de família, não hesitará perante nada, quando uma investigadora de seguros acede às suas memórias para saber o que realmente aconteceu num acidente. Aquela pergunta ecoa, aliás, em toda a série: o que seríamos capazes de fazer na iminência de certos perigos, revelações, humilhações, perdas?
Como tornar soldados humanos, com consciência, em máquinas de matar? Colocando implantes que condicionam o modo como eles vêem o alvo a a abater, transformando-as em "baratas". A designação é certeira, pois o efeito é matar com algum nojo, mas sem misericórdia, seres humanos que aparecem como monstros disformes. "A ciência de matar" é uma parábola da eugenia, em que o "inimigo" são os doentes, os infectados, os fracos. Onde é que já vimos isto?
Num dos episódios mais bem conseguidos, "USS Callister", um geek dos videojogos, tímido e desajustado como convém, captura cópias digitais de todos os que já o humilharam, numa versão secreta de um jogo mundialmente famoso, cruzado com a sua série favorita de adolescente. Que sonho de vingança!, podermos espezinhar todos e cada um que alguma vez nos maltrataram, humilharam ou simplesmente ignoraram, do colega de liceu ao chefe despótico, do condutor malcriado à pessoa que nunca nos concedeu um sorriso, numa iteração infinita algures no universo digital. Patético? Sim, talvez tenham razão. Somos muito patéticos.
Céu
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