Figueiredo, Varda e Kristof: as memórias são como as cerejas



Queridas Senhoras,

depois de ler A Gorda, fui reparar a falha de não ter ainda lido o Caderno de Memórias Coloniais, também da Isabela Figueiredo. Em registo autobiográfico, somos levados a reviver, à luz das memórias da autora, a experiência do fim do colonialismo em Moçambique. Já noutro dia a Céu (na sequência da polémica em torno do Valter Hugo Mãe) reclamava a inclusão d'A Gorda no Plano Nacional de Leitura. Pois eu acrescento este livro à reclamação. E, sim, para ser lido por adolescentes, nem que seja só no 12º ano, para não chocar susceptibilidades. Porque a linguagem da Isabela é crua e verdadeira e há muito pouca a gente a saber lidar com isso (mas os adolescentes sabem, não se preocupem!)

Escolhi dois trechos para partilhar aqui convosco. Não são representativos, por si só, do tom do livro, mas foram para mim como duas pontes.
A forma como olhámos para as nossas mãos na infância, e a forma como olhamos para elas, agora; estou a olhar para as minhas mãos agora, não muda. As mesmas mãos. Como puderam envelhecer e ser ainda as mesmas? As unhas iguais. Os nós dos dedos. Os mesmos olhos. O mesmo pensamento, quando olhamos, com os mesmos olhos, as mesmas mãos.
A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que irá perseguir-nos sempre.

Ao ler estas linhas, regressei ao documentário de Agnès Varda, Os Respigadores e a Respigadora, que vi há uns vinte e tal anos em Lisboa, no cinema, e que me faz companhia desde então. A reflexão de Isabela Figueiredo trouxe-me de volta este momento exacto:
Non, non, ce n'est pas, Ô, râge! Ce n'est pas, Ô, désespoir! Ce n'est pas, Ô vieillesse ennemie! Ce serait peut-être même, Ô vieillesse amie! Et tout de même, il y a mes cheveux et mes mains que me disent que ç'est bientôt la fin.



A segunda ponte de que vos quero falar é uma ponte singular, porque se construiu ao contrário, digamos assim. Foi preciso conhecer o seu ponto de chegada para reconhecer o seu ponto de partida.

Eu explico. Com a leitura de mais esta obra de Figueiredo, confirmei a sensação de semelhança entre a sua voz e a de outra escritora, Agota Kristof, cujos pequenos e acutilantes livros descobri há uns 12 anos, talvez. Prossegui, então, para a leitura de Ontem, um livro de Kristof que ainda esperava pela sua vez na minha estante. E, logo no fim do 1º capítulo, a meras quatro páginas do início, isto:
Afundei o meu rosto na lama fria e não me mexi mais.
Foi assim que morri.
Em pouco tempo, o meu corpo confundiu-se com a terra.

Ora, tinha eu acabado de fechar o Caderno de Memórias Coloniais, que se despedira de mim com um onírico capítulo de apenas duas páginas, em que lera isto:
Não te importa a terra no cabelo nem nas unhas. Esfregas-te. Ris. Ouves o teu riso incomodar a noite. Que silêncio. Que ternura. Tudo é verdade e tu trincas a terra.

É claro que nós conseguimos estabelecer as ligações que quisermos entre palavras, basta colocá-las mais ao jeito que nos convier. Mas, ainda que esteja plenamente ciente disto, não posso deixar de rejubilar com estes encontros. Poderia dizer que são a minha religião. Uma religião de santos com pés de barro, a acreditar em Kristof:
Em geral contento-me em escrever na minha cabeça. É mais fácil. Na cabeça, tudo se desenrola sem dificuldades. Mas, assim que escrevemos, os pensamentos transformam-se, deformam-se, e tudo se torna falso. Por causa das palavras.

E eu que acho que escrevo para pensar melhor...

Beijinhos a todas,
Marta

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