Minhas queridas senhoras,
tenho muitas saudades vossas. Hoje o dia é nosso e por isso obriguei-me a enfrentar a tirania das obrigações e a resgatar um momento para vir aqui celebrar convosco.
O tempo escasseia e também, confesso, o verbo. Mas este segundo problema foi resolvido por uma frase que me ficou do Comboio Nocturno para Lisboa, de Pascal Mercier: "Gregorius fez então aquilo que sempre fizera quando se sentira inseguro: abriu um livro".
Não demorei muito a escolhê-lo. Mulher? Herberto Helder. A associação é imediata. Rapidamente encontrei as palavras que vos quero oferecer hoje, minhas amigas distantes, atarefadas nas vossas vidas plurais, encantadoramente distintas uma das outras e cosmicamente iguais a mim.
Outra associação: o poema que se segue lembra-me o quadro acima reproduzido, "Morning in a City", de Edward Hopper. Tal como em todos os quadros de Hopper, perco-me a tentar adivinhar os pensamentos daquela mulher naquela manhã naquela cidade a olhar pela janela. Em que pensaram vocês esta manhã nessa cidade a olhar pela janela?
LUGAR, de Herberto Helder
IV
«Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.
Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde
uma paixão bárbara, um amor.
Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho a minha loucura, escada
sobre escada.
Mulheres que eu amo com um des-
espero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
levemente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.
Dentro da minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.
Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
das suas cabeças ardentes: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.»
Ah, o prazer de transcrever estas palavras...
Beijos, minhas queridas amigas. Até breve?
Marta
Querida muito obrigada por teres escrito, ainda por cima num dia fundamental para as Senhoras. Olhar pela janela de manhã? Tá bem tá. A correria é tal, sempre acompanhada de "Alice, João!!, "João, Alice!", que não dá para pensar em nada :) O que me vale são os trajectos de comboio onde dá para pensar e ler... a cidade é bonita mas faz-nos levar cá uma vidinha...Maravilhoso o poema, muito obrigada. "Subo as mulheres aos degraus"... lindo!
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