Imagem: Público, Rui Cartaxo Rodrigues // data 20/02/2014
Queridas Senhoras,
não sei se por causa da proximidade das leituras, encontrei muitos pontos em comum entre o Levante-se o Réu, de Rui Cardoso Martins (de que falei aqui) e As Primeiras Coisas, de Bruno Vieira Amaral (n. 1978) que acabei ontem. O livro saiu em 2013, foi amplamente aclamado pela crítica e recebeu vários prémios. Curiosamente, já o tinha em casa há dois anos mas só agora lhe peguei (julgo que embalada pelas crónicas do RCM).
E o que há de comum entre os dois livros? Desde logo a estrutura. Após um prólogo, o romance de estreia de BVA organiza-se em entradas de A a Z, sobre personagens sobretudo, mas também sítios e outros, que são como pequenos contos. É como se primeiro tivéssemos uma panorâmica geral do Bairro Amélia [bairro fictício mas muito real, decalcado das vivências do autor que cresceu no Vale da Amoreira, Moita, na margem sul do Tejo]; depois o autor/narrador vai fazendo zooms, mais ou menos aproximados, mais ou menos íntimos, a habitantes, lugares, acontecimentos. E assim se vai formando a teia de ligações e implicações que compõem as vivências de um bairro pobre e problemático dos subúrbios de Lisboa nos anos 80.
Para além da estrutura também o conteúdo tem muitos pontos de contacto. Os habitantes do Bairro Amélia poderiam facilmente ser os protagonistas das crónicas de tribunal de RCM. E vice-versa. (Não recordo muitas referências à margem sul mas adivinhem?, lembro-me de várias à Amadora).
Há muita miséria e desesperança nos relatos do narrador de As Primeiras Coisas, que regressa ao bairro, a casa da mãe, derrotado, divorciado e desempregado. Agarra-se como a uma tábua de salvação à missão de reconstituir as suas memórias de infância e adolescência, com a ajuda do misterioso fotógrafo Virgílio, o mais fiel guardião das histórias do Bairro Amélia.
E que bairro é este? É um bairro dos subúrbios como tantos outros, representado nas suas cores mais sombrias, nos céus de chumbo, nos prédios sujos, na merda de cão, nos jardins mal cuidados, nos vidros partidos, nas tascas manhosas emprestadas do cheiro do mau vinho e com o chão escarrado, nos gangues, no racismo. Os cenários são asfixiantes, há poucas zonas de respiração.
Mas ainda assim consegui(mos) criar identificação com algumas imagens da infância, as mães que gritam à janela a chamar os filhos para jantar, os jogos de bola, as vizinhas (há muita vizinhança), as escadas dos prédios, o som do amolador, os barulhos diferentes que chegam das varandas ao domingo de manhã, homens de camisola interior de alças à janela….
Apesar de este não ser o meu bairro, por ter crescido na Amadora senti alguma afinidade com a desolação do Bairro Amélia. Imagino que haja uma geografia sentimental comum a todos os subúrbios.
Beijinhos a todas,
Céu
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