Queridas Senhoras,
vivemos numa sociedade muito idadista, somos obcecados com a idade e isso começa logo de pequenino. Controlamos as crianças com tabelas, padrões, rankings, queremos saber a toda a hora se estão dentro dos parâmetros, se cumprem as competências da idade. É sabido como os pais se ufanam em comparações, ai o meu já se vira, já se senta, já anda, corre, cavalga, já salta de paraquedas (o sketch definitivo aqui).
A dada altura, começa o “já não tens idade para isso”. Neste Dia Mundial da Criança, gostaria de partilhar um convosco um livro que celebra magnificamente a Infância. Ofereci esse livro ao Tomé e como a Catarina disse repetidamente que era maravilhoso, pedi-lho emprestado e li-o de um fôlego. A Catarina comentou que é tão bom que apetece citá-lo inteiro. É verdade e por isso recomendo a leitura urgente. Em qualquer idade. O Rapaz dos Sapatos Prateados de Álvaro Magalhães, fala de Poesia, de Filosofia, de Deus, da Vida, da Morte. Assim mesmo, os grandes enigmas todos em maiúsculas. Fala de como tratamos as crianças e de como tratamos os velhos. E do que está no meio, a coisa mais chata e sem graça do mundo: ser adulto.
“Fosse como fosse, fiquei a saber que, segundo as regras da casa, havia uma idade para deixar de brincar. Era aos 9 anos em que, pelos vistos, existe um letreiro que diz: FIM DA INFÂNCIA
Subi para o meu quarto e sentei-me na cama a olhar os presentes. Excetuando o do avô, cada um deles me dizia: «Cresce e faz-te à vida, pá! Já não és uma criança.»
Ora de um modo ou de outro, todos os dias me roubavam um pedaço de inocência, me contavam uma história de desencantar. Não há Pai Natal. Não há fadas nem duendes. Nada disso é real. É tudo treta, imaginação! E então, e então? Claro que há fadas, duendes, Pai Natal, mesmo que tudo isso seja imaginação. Olhem para os livros, os filmes, ouçam as histórias que as mães estão, neste momento, a contar aos filhos e que estes, por sua vez, contarão aos seus. Poderão dizer que nada disso existe? Só não existe o que ainda não foi imaginado. Um sonho, um devaneio, uma fantasia, uma imaginação: tudo isso é tão real como o que acontece quando estamos acordados, só que se trata de uma realidade diferente. Há muitas realidades. Mas a maioria das pessoas só reconhece uma. Por isso lhe chamam A Realidade. E o que é isso, A Realidade? Lojas, empresas, juros, apresentações em Powerpoint, reuniões, apólices de seguro, planos de reforma, trabalho por objetivos? Porque será toda essa tralha mais verdadeira do que aquilo que está dentro das nossas cabeças?
Estava visto que a minha família, talvez o mundo inteiro, queria empurrar-me à força para fora da infância. Parecia que eu estava a estorvar o andamento das coisas e o mundo parava se eu continuasse a brincar com os Gormiti e a imaginar coisas estranhas sentado no parapeito da janela.
Sei como as coisas são: empurram-me para a saída porque, um dia, lhe fizeram a eles o mesmo. É assim que o mundo funciona. (…)
Agora pergunto: um homem feito o que anda cá a fazer? Todos o empurram, também para a saída. De quê? Da vida. E lá vai ele, também a correr, não se sabe para onde, talvez para lado nenhum. Sim, tudo isto é feito a correr. As crianças correm para a adolescência, os adolescentes correm para a vida adulta, e nem uns nem outros param para simplesmente ser. Estão sempre em trânsito, a caminho do que vão ser, e nunca chegam a ser aquilo que são.
Nessa noite, a pensar em tudo isto, tentei escrever um poema incipiente que começava assim:
Que pena que todas estas flores
tenham de ser cortadas
que pena ver todas essas fogueiras
tão rapidamente apagadas…!"
in O Rapaz dos Sapatos Prateados, pp. 42-45
Beijinhos a todas!
Céu
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