Os leitores falam às Senhoras: Maria Almira Soares (professora)




Queridas Senhoras,

hoje falamos com a professora e autora Maria Almira Soares. Licenciada em Filologia Clássica pela Universidade de Coimbra e pós-graduada em Educação e Leitura pela Universidade de Lisboa, foi professora de Português, Literatura Portuguesa e Latim. É coordenadora da comunidade de leitores LERDOCELER e colaborou com a Biblioteca da Escola Secundária José Gomes Ferreira na programação e realização de actividades de leitura. É autora de vários livros auxiliares de aprendizagens como, por exemplo: Como Motivar para a Leitura; Para uma Leitura de Mensagem; a coleção Ler os Clássicos, Hoje; Como Fazer um Resumo. No domínio do ensaio de índole literária ou pedagógica, publicou Memorial do Convento — Um Modo de Narrar; Frei Luís de Sousa — Um Drama Psicológico; Vergílio Ferreira – O Excesso da Arte num Professor por Defeito; Ensinar — Reflexões sobre a Prática Docente. É autora do conto infantil A Revolta das Frases. Foram-lhe atribuídos os seguintes prémios: Prémio de Revelação da APE — Literatura para a Infância e a Juventude em 2003; Prémio Vergílio Ferreira da Biblioteca Municipal de Gouveia em 2010. Prémio de conto A criança eterna do Centro Mário Cláudio, ex-aequo, para Subir o tempo à procura da infância, em 2017. Mantém o blogue Scriptorium.

1. O que está a ler neste momento?

Neste momento, estou a reler O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald que já li há muito, muito tempo.

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Antes de O Grande Gatsby, fiz também uma releitura de um livro lido há muito tempo: O Delfim de José Cardoso Pires. 
O que vou ler a seguir não sei.


3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros

Quando era pequenina (é assim que se diz, não é?) o meu pai, não sendo quase nada letrado pelo menos formalmente, gostava de histórias: de as inventar ou reinventar e de as contar. Contava teatralmente, delirantemente. E tinha um repertório em que campeavam o José do Telhado, os Quarenta Ladrões, lobos, raposas e cordeiros, anões e princesas, botas de sete léguas, caçadores, meninos perdidos na floresta, bruxas e fadas, moleiros e cavaleiros, mantos de sete cores, rouxinóis e imperadores, avozinhas e bolinhos, sapatinhos de cristal, expressões como «saltou-lhe ao caminho», «pegou no facão», «deu três cambalaritas no ar», «cheira-me aqui a carne humana», «Maria-Bebe-Azeite», «mãos ao ar», «passa para cá a bolsa», «partiram para as cavalhadas», «desfez-se o encanto» ... ... ...
Dentro daquelas histórias, rebentava o mesmo encantamento que me chamava para as brincadeiras. Enquanto ouvia/via o meu pai a contar, um fenómeno de bifrontalidade, semelhante à do anjo da História, transmudava-me o rosto: carinha a ver passar e fugir ‘acontecidas’ maravilhas transportadas pela voz sem leitura; carinha a encher-se do desejo de prolongar, de fixar, de guardar aquelas maravilhas no bolso, o ainda desconhecido desejo de ler. Depois, aprendi a ler.

Em breve, haveria de me aventurar no livro — até aí ignorado — de onde vinham, ainda que transformadas pela inventividade narrativa do meu pai, muitas das histórias que ele me contava... De facto, o meu pai gostava de reinventar as coisas, o real. Assim, com alguns dos livrinhos de histórias que, das suas andanças profissionais por aqui e por ali, ia trazendo para casa, e com um cordel fininho mas forte e uma agulha grande, ele inventara um livro grosso em que os variados livrinhos se sucediam e que eu, agora, lia, sentindo ecos do que tinha conhecido na voz e nos trejeitos e no corpo do meu pai. Assim, li um livro feito de livros: sem sacrilégio, a pequena bíblia do imaginário paternal. Alguma coisa, muito nova na minha vida, tinha começado: a leitura de histórias inventadas. Lido e relido, encaracolado por folheamentos ansiosos em busca daquela história, daquela personagem, daquelas mágicas palavras, o livro ia perdendo estado, à medida que se escoava para dentro de mim: materialmente, era um destroço; magicamente, era um jardim, uma ilha, um mundo maravilhoso.

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

Um dia, ao dar dos primeiros passos na adolescência, fui encontrada pelas Prosas Bárbaras do Eça e, como diria o Nobre, «Ó sonho! Ó maravilha!/Fazer parte de uma quadrilha...», neste caso de uma metafórica quadrilha de personagens de tragédia, de mortos e abutres, de fogos e de forcas, de ladainhas de dor, de diabos e de deuses, emboscados numa prosa visionária que era poesia, sonho, fantástico, música...! Pairar, pouco conscientemente, naquele mundo tentador e arrepiante! Era o início da imensa descoberta de Eça de Queirós que haveria de me levar a mundos muito diferentes. Era o semear da saudade futura daquela arte narrativa sem igual, daquela mestria verbal. 


5. Um local público onde goste de ler
Não gosto muito de ler em lugares públicos.


6. O seu recanto preferido de leitura (em casa)

O meu lugar de leitura é numa cómoda poltrona encostada a uma mesa onde pousam e repousam livros, enquanto os não tenho em mãos.



7. Uma biblioteca importante para si

Adolescente, despertei para uma nova compreensão da biblioteca do liceu (o liceu Carolina Michaëlis, no Porto): a biblioteca não era apenas, como poderia parecer e até aí me parecera, um lugar programático que guardava os livros donde tinham saído os textos da colectânea oficial que se liam nas aulas ou outros com muito próxima afinidade. Apercebi-me de que, na Biblioteca do Liceu, estava todo o Eça, todo o Camilo, todo o António Vieira... todo o muito que sobrava do que vinha no livro da aula. A Biblioteca era e não era escola. Era mais do que escola. E, então, grande parte do meu tempo mudou-se para lá, para a Biblioteca: tardes e tardes a ler de seguida, como quem percorre estradas sem fim, aquela língua portuguesa de Camilo, aquela língua portuguesa de Eça, tão diferentes uma da outra! A percorrer os labirintos exactos de Vieira! Aquelas notas isoladas, que na aula eram tocadas nos limites de um A Cidade e as Serras, de um A Ilustre Casa de Ramires, de um Amor de Perdição, de uma pregação a peixes, estenderam-se a grossos concertos onde se ouviam muitas outras vozes: de A Brasileira de Prazins, de Eusébio Macário, de A Corja... de A Capital, de O Conde de Abranhos... de o Sermão da Sexagésima... Li o Camilo todo. O Eça, não. Claro que havia interditos, livros importantes cuja existência me continuaria obscura, mas as descobertas eram muitas. E a vontade de me completar mais tarde também. De momento, para mim, já era um tremendo achado aquele lugar onde se poderia estar, feliz, a ler, por exemplo, um Vieira sem fim...

8. As livrarias que costuma visitar

Vou mais à procura de livros do que de livrarias. Procuro os livros onde os houver. Quanto mais uma livraria não é apenas um lugar por onde passam os acabados de sair, mais eu a frequento.



9. Uma editora de que goste particularmente

A Dom Quixote.



10. Que livros gostaria de reler?

Talvez um dia me ponha a reler os livros de David Herbert Lawrence. O Homem que Morreu ainda hoje vibra dentro de mim como se o estivesse agora a ler.



11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

Bom, onde é que começa a velhice?



12. Acessórios de leitura que não dispensa

Todos, dispenso todos. Sou eu e um livro. Só.



13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

A minha relação com um livro não passa pela palavra «prender». Nem de livros gosto de me sentir presa. Penso que ler não é uma tarefa que tenha de se cumprir. É uma relação motivada sujeita à variação de intensidade dos factores que a sustentam, uns mais íntimos, outros mais contextuais. Assim, o meu ritmo de adesão a um livro é bastante irregular, demora aqui, acelera ali, fico eternidades a morar num parágrafo, voo para um patamar mais à frente, ausento-me de caminhos
desinteressantes. Tudo isso é a minha leitura. 



14. Costuma ler sobre livros? Quais são as suas fontes?

Sim, muito. As fontes são muitas e diversificadas: livros de ensaio; artigos de revistas; entrevistas; apresentações; prefácios; sítios da Internet; trabalhos académicos; diários; correspondência... 



15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade

«O encontro feliz com um livro foi combinado fora de nós.» — Vergílio Ferreira




Beijinhos a todas,

Céu

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