Foto: Direcção Geral do Património Cultural (www.patrimoniocultural.gov.pt)
Queridas Senhoras,
«Se não estiveres disposto a conhecer-te melhor, a tua escrita não passará de um engano.»
Esta máxima de Wittgenstein foi o mote para o curso de Arte da Crónica com o escritor e argumentista Rui Cardoso Martins. Ao longo das semanas, entre Fevereiro e Maio, fui partilhando na página de Facebook do blogue as minhas impressões sobre as aulas. Foi uma experiência tremenda e uma grande terapia na quarentena. Escrevi sete crónicas. Gostaria de partilhar aqui a que me deu mais gozo escrever. Porque consegui fugir ao tom demasiado melancólico das outras, o registo para onde resvalo quase sempre, e porque conta uma história verdadeira e divertida (acho) desta quarentena. Espero que gostem!
A porca e a ratazana
Animais que não é hábito ver na cidade, dizem vocês? Epifanias de elegância e agilidade que suscitam belas metáforas sobre o significado de tudo isto? Por aqui tivemos uma porca a chafurdar na ribeira de Carenque. É o que há, lamento. Vida de subúrbio.
Desde que entrei em quarentena, passo diariamente na ponte sobre a ribeira que separa a Amadora de Queluz, faz parte do meu trajecto de corrida. Comecei a reparar que as pessoas se juntavam ali e claramente não seria para apreciar o curso de águas cristalinas.
Fui ver. Era uma porca.
Parece que a bicha se escapou de uma quinta lá para cima, ao pé do cemitério, e veio por aí abaixo. Desde então, vive por ali, há quem vá lá despejar comida. Já tentaram apanhá-la, chamaram diversas entidades competentes, mas sem sucesso.
A porca come, dorme, brinca. Aparenta ser jovem. Não percebo nadas de porcos, apenas me parece que tem um ar jovial, brincalhão. Todos os dias os mirones picam o ponto. Eu nunca falho. Em circunstâncias normais seriam as crianças da escola a visitar quintas pedagógicas para ver e brincar com os animais da quinta. Mas as crianças estão em casa, e os adultos em layoff ou no desemprego têm tempo, e espírito, para se enternecer com uma porca que se escapuliu para uma ribeira imunda. Muitas vezes, junto à porca, anda a ratazana, grande como um coelho. Tem-se regalado com o serviço de entrega de refeições ao domicílio, prestado pelos “populares”, como diria a Cmtv. Como seria esta ocorrência noticiada por tão elevado órgão de comunicação?
«Porca em fuga. Populares dão guarida ao animal.»
— Ainda agora aqui esteve, mas abalou por aí fora.
— Ui, isso agora, já deve estar pra’ Carenque.
Risota geral e missão cumprida. Não avistámos a porca, mas a minha filha percebeu que o caso é verídico e sério, mobilizando a atenção de dezenas de transeuntes. Até parece que esta gente não tem mais que fazer.
Ainda lhe disse, olha não está cá a porca, mas queres ver a ratazana? Claro. Lá estava ela, gorda, cinzenta e asquerosa. O passeio foi um sucesso, isto é, um nojo.
Arte da Crónica, Maio de 2020
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