Três galinhas no Bairro Azul



Foto: Bairro Azul, Lisboa de Antigamente (https://lisboadeantigamente.blogspot.com)

Queridas Senhoras,

partilho mais um texto que escrevi no curso de Arte da Crónica. Este foi o primeiro, ainda em tempos pré-pandemia. Logo na primeira aula, quando o programa do curso foi apresentado, notei a quase completa ausência de mulheres. Isso fez-me ir à biblioteca à procura de compilações de crónicas escritas por mulheres e vim de lá com os Diários de Emília Bravo, de Maria Judite de Carvalho. Comparo a minha relação com esta escritora um pouco com o que aconteceu recentemente com a Rachel Cusk, de quem tanto eu como a Marta já falámos na página de Facebook do blogue. Uma escrita hipnótica, que não se consegue parar de ler. Acontece-me o mesmo com qualquer texto de Maria Judite de Carvalho: romance, contos, diários, crónicas.

Inspirada por esse livro, esta crónica segue o meu padrão (nostálgico, melancólico) e valeu-me ainda o "cumprimento" de um colega vinte e tal anos mais jovem acerca de a minha escrita ser "antiga". Uma das coisas muito boas destes cursos é reunir pessoas de diferentes gerações (se bem que esta conversa é muito bonita, mas eu já vou sendo sempre a mais velha), o que permite confrontar diferentes estilos, temas, visões do mundo, épocas. Inevitavelmente, escrevi sobre algumas coisas que os colegas mais novos nunca conheceram. Aqui vai.


Três galinhas no Bairro Azul

À procura de mulheres cronistas, ponho-me a ler Diários de Emília Bravo (Editorial Caminho, 2002), compilação das crónicas de Maria Judite de Carvalho (1921-1998) para o suplemento «Mulher», do Diário de Lisboa. A discreta escritora portuguesa, autora de Tanta Gente, Mariana, As Palavras Poupadas, entre outros volumes de contos, novelas e um romance (Os Armários Vazios) não me era desconhecida, sobretudo desde que a Almedina, pela chancela Minotauro, iniciou a reedição das suas obras completas, em 2018.

Poucas linhas lidas e já não posso largar aquela prosa quotidiana, composta de textos breves, impressões disto e daquilo. O tom é próximo e despretensioso, parece que fala comigo. Reflexões sobre o ambiente, o custo de vida, o fraco sabor do pão, as desigualdades sociais, a condição da mulher, as modas, a qualidade dos programas de TV e dos espectáculos teatrais. E também encontros casuais, conversas escutadas, alguém que ela observa na rua, nas lojas, no trânsito. Início dos anos 70 e já havia problemas de estacionamento em Lisboa. De política nacional, quase nada. Isso era lá assunto, muito menos de mulheres.

Vou correndo os textos e sinto-me uma leitora da época de Maria Judite. Das duas, uma: ou as crónicas mantêm actualidade ou a minha nostalgia está pior. Mas é compreensível. Os diários vão de 1971 a 1974. Eu nasci em 74, três meses após a Revolução. Enternece-me pensar nesse mundo que quase conheci, nessa Lisboa onde poderia ter-me cruzado com Maria Judite, ser uma das rapariguinhas que ela observa a brincar no parque, ou às compras com a mãe na Baixa. Terá acontecido? Poderia ter acontecido? Não me recordo de andar às compras na Baixa com a minha mãe, nem tão-pouco fui uma menina de Lisboa. Mas, quem sabe, algum passeio a Belém ou ao Castelo de São Jorge, alguma visita aos meus tios na Graça, e lá nos teremos cruzado. Nunca saberei.

Prossigo a leitura e fantasio um encontro, uma ida ao teatro, um lanche elegante. Será que desencantamos um sítio onde haja bom pão, com o sabor de antigamente? Digo aquele antigamente mesmo antigo, o tempo mítico em que comíamos o melhor pão das nossas vidas. Ora, entre cafés nórdicos, padarias vegan, boutiques de pão artesanal, de certeza que nos safamos. Pois não se encontra agora de tudo em Lisboa?

Assunto de conversa não nos faltaria. Leio que Maria Judite deu uma vez com três galinhas a debicar o chão no Bairro Azul e fixo essa imagem (porquê azul? perguntava ela. Agora é fácil saber, acabei de ver na internet: «Bairro criado nos anos de 1930, o primeiro a ser classificado como conjunto urbano de interesse municipal, assim designado por causa da cor das persianas, portas e caixilharias»).

Pois sabe, Maria Judite, trabalhei durante quinze anos mesmo ao lado do Bairro Azul. Galinhas, nunca vi. Só mesmo os patos dos jardins da Gulbenkian, companhia algo incómoda à hora de almoço, não nos deixam comer uma sandes em sossego. Mas de resto, um encanto, um idílio. Há lá melhor para arejar das horas encafuada no escritório.

Frequentei, pois, aquela vizinhança durante quinze bons anos. Mas aos poucos, ou de repente, tudo mudou. A Pó dos Livros da Marquês de Tomar (uma livraria de culto com cave e tudo, a Maria Judite havia de gostar), onde eu era cliente assídua, mudou-se para a vizinha Duque de Ávila. Uma loja mais espaçosa e bem localizada, montra grande e atraente. Mas sem cave, note-se. Aguentou-se por lá dois ou três anos, e depois fechou. Para sempre, até ver, nunca se sabe, desabafou o livreiro. Nos antigos espaços da livraria estão agora, respectivamente, um restaurante nepalês e, voilá, uma imobiliária, ali de esquina, à beira da moderna ciclovia.

Havia também uma tasca bem castiça, antiga carvoaria, onde aviavam o sr. João e a D. Glória. Fui lá muita vez comer sopa de feijão e hortaliça e sandes de panado. Sempre o mesmo menu (variar é tão sobrevalorizado; ainda bem que pedi sempre o mesmo, pois era muito bom e acabou-se). A sério que achei que a Central das Avenidas ia sobreviver às modas. À gentrificação, como dizem os artigos de jornal e os estudos sociológicos. Tinha aquele ar de taberna antiga (alvará de 1927!) tão do agrado dos turistas, mas também de operários, lojistas, funcionários da Gulbenkian, estudantes, professores universitários. Tudo a valer, genuíno, nada a ver com as tascas fake news que para aí abundam. Uma relíquia cheia de vida e boas iscas (para quem gosta).

Pois olhe, foi-se tudo. O prédio entrou em obras, mandaram fechar a tasca, o sr. João e a D. Glória mudaram-se para a terra. E eu perdi o emprego. Lá se foram os passeios à hora de almoço, a desenjoar do expediente, por toda a bela vizinhança do Bairro Azul. A Gulbenkian continua por lá, felizmente. E os patos também. A debicar o pão sem glúten de algum turista ou funcionário distraído.


Fevereiro de 2020


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