Queridas Senhoras,
Licorice Pizza é aquele género de filme que só faz bem. Não fala de coisas graves ou urgentes ou contemporâneas. Não faz pensar muito, nem questionar, nem entrar em grandes dilemas. Tem aquela dose de irrealidade e fantasia que se mantém do limiar do impossível. Um rapaz de 15 anos pode ser um empresário, ter um negócio caseiro de colchões de água e empregar crianças? Pode apaixonar-se por uma rapariga de 25 sem que ela se ria na sua cara ou sejam os dois presos? Então não pode.
Se fosse hoje, Gary Valentine (interpretação cheia de ternura de Copper Hoffman, n. 2003, filho de Philip Seymour Hoffman, falecido em 2014, e que estranha, triste e doce parecença entre os dois) teria conta no Twitter e no Instagram, seria estrela de TedTalks e provavelmente presidente da associação de jovens empreendedores. Só que o filme passa-se no início dos anos 70, num mundo paralelo, semelhante às histórias de aventuras comandadas por crianças, onde os adultos mal têm uma palavra a dizer. E embora o protagonista seja de facto um fura-vidas, ninguém fala em empreendedorismo, resiliência ou ideias disruptivas. Se fosse hoje, estava filiado no Iniciativa Liberal.
Aproveito para dizer que o senhor do Iniciativa Liberal me dá arrepios. Sinto sempre que me despreza por não jogar na bolsa ou aprender de uma vez por todas o que são ETF's. Eu juro que já subscrevi newsletters de finanças pessoais para tentar saber mais sobre mundos e fundos, mas depois esqueço-me de as abrir porque perco demasiado tempo a ler críticas de filmes, livros e peças de teatro, e as únicas newsletters que abro são as que falam dessas coisas inúteis. E também alguma coisa sobre política, filosofia, ética. Por exemplo, simpatizo muito com a ideia do rendimento básico incondicional. A ideia de que temos direito incondicional a uma sobrevivência digna. Não dependente da sorte, do azar (e dos azares), da família, dos amigos, da inteligência, do contexto, do mérito, do esforço. Não pedimos para nascer, chegamos a este mundo por vontade alheia. Filosoficamente isso não implica que deveríamos ter sempre direito a uma existência digna?
Bom, se calhar desviei-me do assunto, mas acontece que Licorice Pizza transpira liberdade, leveza, possibilidade. E a associação de ideias é que só podemos ser livres, leves, criativos, loucos, se não estivermos reféns de um modelo económico que consome as horas e os sonhos, que não deixa margem para outras corridas, outros voos, e muitas vezes sem dar sequer um salário condigno em troca.
Afinal, parece que o filme até me deu que pensar.
Céu
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