A funcionária



Queridas Senhoras,

sabem que tenho um interesse especial, talvez um pouco mórbido, por filmes sobre o mundo do trabalho, como A Lei do Mercado e Eu, Daniel Blake, para mencionar aqueles de que falei aqui no blogue. Acabo de ver A tempo inteiro, de Eric Gravel, que compõe um filme alucinante, com ritmo de thriller, a partir de uma semana na vida de uma mãe divorciada que procura fintar as greves de transportes para não faltar ao trabalho. Uma hora e vinte de pura ação e adrenalina com uma heroína que apenas quer picar o ponto a horas e regressar a casa a tempo dos banhos e do jantar. Ao longo da semana, estes objectivos aparentemente humildes vão ficando cada vez mais comprometidos, e tudo se complica quando ela é chamada para uma entrevista que lhe permitirá conseguir um emprego melhor.

Julie trabalha como camareira-chefe num hotel de luxo, mas tem formação em Economia, teve um emprego anterior mais qualificado, e tem ambição para voltar a conquistar uma posição de acordo com as suas qualificações e experiência. Enquanto luta por isso, e por manter os filhos no ambiente pacato de uma aldeia nos arredores de Paris, que lhe custa as viagens diárias que com as greves se tornam impossíveis, vai limpando, e ensinando a limpar, a merda dos ricos. Com tudo o que de literal isto implica, isto é, é mesmo merda e são mesmo ricos. Tanto que quando os milionários espalham merda da grossa pelas paredes é preciso ir buscar o compressor. E lá se vão os azulejos da melhor faiança. Olha que ainda sai do teu ordenado. Julie é escrupulosa e cumpridora. Da sua função faz parte instruir as novas empregadas, e a primeira regra que Julie explica é a da invisibilidade. As camareiras têm de ser invisíveis e isso começa pelo odor (lembram-se de Parasitas?), por isso a rapariga nova fica logo a saber que cheira a suor e deve comprar um bom desodorizante. O tempo é de pós-pandemia e teletrabalho. Para quem pode, claro. Vão lá limpar retretes à distância, riem-se as funcionárias na copa durante a pausa de almoço.

Desdobrando-se em esforços e estratagemas, Julie passa à segunda fase do processo de recrutamento para ser então entrevistada por uma directora de marketing obviamente mais nova e ainda não amassada pela vida. Desenrola-se então a conversa habitual, a troca de perguntas e respostas sempre ligeiramente humilhante e absurda. Afinal, é só por acaso que uma está de um lado e outra do outro, é tudo tão arbitrário. Está preparada para trabalhar muitas horas? Como planeia deslocar-se de tão longe? Não prefere ficar mais perto dos seus filhos? Porque aceita um cargo inferior ao que tinha antes? Segura o sorriso, Julie.

A câmara está sempre em cima de Julie, dos seus gestos, das suas respirações. Vemo-la a dormir antes do toque do despertador que dá início à longa jornada, tempo mais do que inteiro, tempo total e totalizante, e tememos esse toque. Julie corre o tempo todo. Corre para os transportes, e corre ainda mais quando não há transportes e tem de chegar a tempo ao hotel de luxo porque ali ninguém gosta de esperar. E queixam-se do mínimo incómodo, pagam para isso, e para deixar merda entranhada nas paredes. Julie apruma a farda, prende o cabelo, estica o lençol, aspira o chão, troca as flores, engole o almoço feito em casa, pica o ponto, ignora a chamada do Banco, fala para o atendedor de chamadas do ex-marido, corre para a estação, perde o comboio, perde o autocarro, perde a compostura, pede boleia, corre à chuva, resgata os filhos de casa da vizinha, dá os banhos, descasca legumes, serve o jantar, arruma a cozinha, adormece os filhos, sossega os medos. E no dia seguinte recomeça.

Beijinhos,

Céu

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