A sua vida encontra-se em lista de espera



Queridas Senhoras,

poderá passar despercebido nesta quadra natalícia em que se procuram filmes e espectáculos mais fantasistas mas Eu, Daniel Blake de Ken Loach, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, merece toda a nossa atenção. É um filme poderoso e esmagador na sua simplicidade. Um homem com 40 anos de trabalho e prestações sociais, carpinteiro de profissão, enfrenta o calvário da burocracia sem rosto para conseguir uma pensão de invalidez devido a um problema de coração.

O nosso homem chama-se Daniel e tem a idade aproximada de Thierry, protagonista do filme A Lei do Mercado de que falámos aqui em Maio. Lembram-se de Thierry, o desempregado? Pois bem, hoje, ao assistir a Eu, Daniel Blake, veio-me de imediato à memória essa personagem. Ambos se movem em universos idênticos, no limiar da pobreza, e enfrentam sistemas semelhantes. Imaginei-os aos dois, tipos íntegros e inteiros, a beber a caneca de cerveja que está ausente nos dois filmes. Thierry nunca descontrai e Daniel recusa o convite de um colega para passar no bar, apesar de estar esganadinho por uma caneca.

Imagino-os a beber a tal cerveja e a rir, se o caso fosse para rir, desse sistema kafkiano, informatizado, digital, online, labiríntico nos seus requerimentos, formulários, pedidos, apelos, recursos, avaliações, recusas. Imagino-os a gozar com os workshops que ajudam a procurar emprego, a melhorar o CV. CV? Sim, e um CV por escrito já não chega. O candidato deve procurar diferenciar-se. Enviar fotos, vídeos, aplicações e o diabo a quatro. E Daniel que não sabe ligar um computador. Thierry sempre se safava melhor. Daniel constrói coisas com as mãos. Do nada faz aparecer uma bela estante para livros. Dêem-lhe um pedaço de terra e ele ergue uma casa. Só não lhe peçam para preencher um formulário online. E não me parece que tenha a página do Linkedin actualizada.

No seu apelo final, no recurso que redige sem utilizar o Word e a fonte Times New Roman, Daniel dirá que não é um consumidor, nem um cliente nem um utilizador. Raios! Ele é uma pessoa. Um cidadão. Nem mais, nem menos.

Existimos para o sistema, para os vários sistemas que dominam a nossa vida, enquanto somos úteis. Como contribuintes, trabalhadores activos, consumidores e clientes de empresas que se desdobram em ofertas, campanhas e promoções. Somos os maiores enquanto estivermos aptos a trabalhar e a consumir. Tornamo-nos um problema quando falhamos. Quando deixamos de estar operacionais. Pode acontecer a todos. Mas o sistema detesta falhas. E parece cada vez assustadoramente mais fácil desiludir o sistema.

Beijinhos a todas,

Céu

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