Queridas Senhoras,
ontem foi dia de saída cultural entre mãe e filhas (eu, irmã e mãe). Anseio pelo dia em que a Alice se juntará a nós. Ainda tentei cativá-la para vir connosco mas não foi, literalmente, na conversa. Não se tratava de um programa convencional de cinema, teatro ou música. Era uma conversa no âmbito do Estar em Casa, evento com uma série de iniciativas espalhadas pelos vários espaços do Teatro Municipal S. Luiz. (Achei que o tema podia ser apropriado para a Alice mas como ela já sabe o que a casa gasta, é muito vigilante em relação aos meus convites, receia ser arrastada para programas que não são para a idade dela.)
Assistimos a duas conversas - Família: as coisas que se passam em casa e A casa da minha infância - com variados e interessantes conversadores (mas aqui não vale a pena disfarçar: fomos lá pelo Pedro Mexia, interveniente do segundo painel).
Richard Zimler falou da excessiva importância que em Portugal se dá à família, do modo como a casa de família é protegida do exterior e como é difícil aceder a esse universo, inclusivamente ser convidado para jantar ou para socializar. Alexandre Quintanilha, no segundo painel, entre muitas histórias divertidas e enternecedoras, tocou no mesmo, a forma como tapamos as nossas janelas com portadas e cortinas, como não queremos que nos vejam de fora para dentro. Eles, em contrapartida, mandaram construir uma casa sem paredes no interior e com uma enorme parede em vidro, escancarada ao exterior.
Gabriela Moita, sexóloga, alinhou com Zimler quando caricaturou a pressão da sociedade para manter a família, ou a aparência de família, a todo o custo. Perante anos de violência doméstica contínua, não é raro que se louve a mulher que “fez tudo para salvar a família” em detrimento da sua própria salvação. A família sobrepõe-se ao pessoal, quase anulando o indivíduo.
Ana Margarida Carvalho, jornalista e escritora (filha do escritor Mário de Carvalho), falou dos códigos familiares, de um tom, de uma linguagem própria que se desenvolve entre os membros da família, não inteiramente captada pelos estranhos ao meio familiar.
Pedro Mexia mencionou o mesmo ao referir, inclusive, a existência de palavras próprias da família. É usual o revisor da editora ou do jornal mandar provas para trás com a indicação de que determinada palavra não existe. O dicionário confirma que sim, embora haja um cemitério de vocábulos esquecidos. Porventura cada família acarinha uns tantos, numa adoção linguística que os vai mantendo vivos (o meu pai está a compilar um dicionário de palavras que a minha mãe usa, que as crianças não ouvem em mais lado nenhum, que já vêm das minhas avó e bisavó).
Mas a intervenção de Pedro Mexia, que como é seu costume vinha abundantemente munido de livros e citações, começou com um poema de Ruy Belo que ele leu na íntegra.
Oh as casas as casas as casas
Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas
Ruy Belo
Todos os Poemas
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000
[Um parêntesis para comentar os escritos e as intervenções de Pedro Mexia. Parecem-me sempre ser o contrário da banalidade. Têm pouco ou nada a ver com modas, com o momento, com a febre do imediato. São intemporais, universais, não têm pressa nenhuma, são válidos agora e daqui a 20 anos. Há sempre informação substancial, factos, análises, nenhuma frase vã. Mas é um conhecimento que não se impõe, não intimida, não é ostensivo. Em todas as crónicas e conversas aprendo coisas que não sabia, sobre a literatura e os escritores, principalmente, mas também sobre cinema, teatro, música, política, história. Sendo ele uma figura, sem dúvida, um intelectual prestigiado e um cronista que não omite o eu, por vezes antes pelo contrário (no estilo diarístico que professa há uma obsessão com o eu) consegue uma coisa notável que é o apagamento da figura para fazer sobressair a informação, a análise, o poema, a obra.]
No final da conversa alguém do público lança uma pergunta entusiasmante. Há em todas as infâncias, ou deveria haver, uma figura mágica, uma espécie de bruxa ou feiticeiro, alguém que quebra a ordem das coisas e revela o poder da rebeldia, da transgressão. Tiveram uma figura assim? Quem foi?
Alexandre Quintanilha, com muita graça, mencionou uma mulher fantástica, uma biofísica com quase dois metros de altura (?!), que fumava um cachimbo de marfim. Como se isto não fosse suficiente, a senhora excedia-se quando bebia um bocadinho. Hilariante. (Isto contado pelo homem que, quando chegar aos 90, quer experimentar uma trip de LSD).
Os feiticeiros de Mexia eram os amigos do pai que iam lá a casa, senhores absolutamente circunspectos excepto quando discutiam literatura. Aí transfiguravam-se, tornavam-se extravagantes, adquiriam contornos desconhecidos. Foi logo aí que ele teve a intuição: a literatura é uma coisa muito séria.
Beijinhos a todas,
Céu
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