Ter a palavra

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Queridas Senhoras,

nos últimos tempos alastrou pela cidade um surto de poesia. A uma segunda ou uma terça-feira, por exemplo, dias tão cinzentos, pessoas reúnem-se em bares, cafés, livrarias, associações culturais para uma actividade quase clandestina, subversiva. É que na minha visão romantizada estas noites esconsas são o exacto oposto de uma rotina desinteressante e mecanizada. Na prática, quem é que tem tempo, paciência, energia, disponibilidade mental e emocional para a poesia numa segunda-feira à noite?

O mesmo poderá dizer-se de uma noite de teatro, cinema, ópera ou bailado. Mas a poesia, por dispor apenas da palavra, tem, ao mesmo tempo, uma fragilidade e uma força particulares. No caso da poesia dita na rua, desprotegida, exposta aos elementos, isto sente-se de forma muito intensa. Ficamos abalados. Eu cá fico.

Ontem, ao final da tarde, assisti a um dos eventos de abertura do Festival Silêncio  (30 de Junho a 3 de Julho) chamado A Poesia das Fronteiras. Várias pessoas que costumam participar nos encontros dos Poetas do Povo e outros, disseram poemas seus e alheios, num palco da Rua Nova do Carvalho, ao Cais do Sodré, sob o arco da Rua do Alecrim.

Uma voz que irrompe no silêncio ou no ruído citadino às sete da tarde, quando a cidade fervilha de turistas, adeptos de futebol, gente cansada, distraída ou desistente, quando essa voz - profunda ou cristalina, poderosa ou tímida, zangada ou risonha - chega até nós, sentimos as palavras directamente na pele. Eu cá sinto.

É curioso como se procura cativar os públicos com espectáculos e performances cada vez mais elaborados, cheios de efeitos, videomappings e mais não sei o quê. Mas, de repente, há um homem ou uma mulher (ou uma criança) a dizer um poema numa praça, num jardim, numa avenida, despido de todos os artifícios, sem quaisquer adereços, sem apoio, sem rede, sem explicação. É avassalador.

E assim se desafia "o modo funcionário de viver" do O' Neill que também esteve lá ontem e fez companhia ao Drummond de Andrade.

(ouvido na rua)

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Beijinhos a todas,

 

Céu

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