Júlia já não mora aqui



Queridas Senhoras,

violência no namoro e violência doméstica: são estes os temas com que somos muito explicitamente confrontados logo nas primeiras páginas do novo romance de David Machado, Debaixo da Pele.

E como não há forma meiga ou leve de abordar estes assuntos, é logo a doer, desde as linhas iniciais. Júlia foi parar ao hospital, vítima de uma tareia do namorado e o pai deixou de saber rir com ela. A mãe, estóica, não desarma e está sempre pronta a levar-lhe um chá, seja a que horas for. Só que pela noite dentro, aos pesadelos de Júlia chegam os gritos dos vizinhos do lado. E a música do Sérgio Godinho não se ouve neste prédio. Há muito que o amor não acorda, restam os dias e as noites brutais.

Júlia deixou de saber viver mas finge. Se for aos poucos, e à força de charros, ela é capaz de fingir com alguma eficácia. Estaremos todos a fingir? Já podemos voltar para casa?

“Existe a hipótese de estarem todos a fingir. É uma ideia nova. Mas, porque não? Ela está a fingir, dentro do carro, ao lado do pai. A probabilidade de ser a única nesta cidade a fazê-lo é um erro estatístico. Talvez estejam todos à espera do momento certo, quando ninguém estiver olhar, para voltarem para casa e ficarem lá, quietos, até a noite cair.”
pp. 23

Quem resgata Júlia é Catarina, a menina de 4 ou 5 anos, filha dos vizinhos agressores. Ou será o contrário? A aventura de Júlia e Catarina ocupa a primeira parte do romance. Nas duas partes seguintes ficaremos a saber mais sobre o futuro de ambas. As vozes narrativas mudam, a estrutura também, avançamos no tempo, conhecemos novas personagens.

Que será feito de Júlia? E de Catarina? Terão sido capazes de construir afectos, apesar da violência que lhes ficou marcada nos corpos?

Em Índice Médio de Felicidade, o romance anterior de David Machado sobre o qual escrevi aqui (o livro foi entretanto adaptado ao cinema e o filme estreia a 31 de Agosto), a esperança era claramente um desígnio, quase um absurdo.

Debaixo da Pele não consegue ter a vibração e a energia do livro anterior, parece-me, mas a esperança não está ausente e chega, sem surpresa, pela voz do último narrador. Uma criança, naturalmente.

“E eu aproximei-me e beijei-a, porque quando tens onze anos e estás apaixonado por uma rapariga de doze e ela te diz que a beijes aqui e agora não podes fazer mais nada senão obedecer antes que ela mude de ideias. Mas, assim que os meus lábios tocaram nos dela, eu soube que a minha mãe estava certa, pois naquele momento teria sido mais fácil acertar em mim do que num pato a nadar no lago.”
pp. 216

A última parte do romance devolve-nos a esperança, a generosidade, a entrega. O medo e o sofrimento não impedem que o amor irrompa sempre e a cada momento, por exemplo, na paixão incipiente e livre de dois pré-adolescentes.

Continuação de boas férias e boas leituras!

Beijinhos a todas,

Céu

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