Os leitores falam às Senhoras: Fernanda Mira Barros (editora)




Queridas Senhoras,

chegamos ao final do ano com o bonito número de 80 entrevistados, entre escritores, livreiros e leitores. Nesta última categoria falámos com professores e investigadores, tradutores e revisores, jornalistas e críticos literários, bibliotecários, bloggers e, claro, editores. A nossa última convidada de 2018 é Fernanda Mira Barros, directora editorial da Livros Cotovia, missão que assumiu no final de 2016 depois de ter dedicado quase toda a sua vida profissional a esta casa editorial, fundada em 1988 por André Jorge (e pelo irmão João Miguel Fernandes Jorge). Na lista de dez experiências culturais essenciais para a sua construção pessoal (citadas no Curso de Cultura Geral, de Anabela Mota Ribeiro), Fernanda Mira Barros inclui Simone de Beauvoir, o Gato e a Planície Alentejana. Neste questionário desvenda outros gostos e, sobretudo, muitas leituras.


1. O que está a ler neste momento?

Vários livros, naturalmente. Voltei, por exemplo, a um livro que a Cotovia publicou há muito tempo, na Sabiá, que é uma colecção de literatura brasileira contemporânea. Chama-se Barco a seco esse livro, é do Rubens Figueiredo, um escritor estupendo e que está a fazer um trabalho excepcional com a tradução dos grandes russos no Brasil. É uma beleza, uma beleza; leio-o devagar porque merece cada momento do nosso tempo; nem uma palavra ali está a mais ou a menos; e tem muito mar, muita solidão. Tenho também O burro de ouro na mesinha de leitura, de Apuleio, claro, um clássico que me faz rir de cada vez que o leio. E as peças de teatro do Ibsen, amores da minha vida. Noutros livros vou pegando, vivo numa casa com livros por todo lado, trabalho numa editora onde há livros por todo o lado, eles pedem que lhes peguemos e os folheemos. Poesia, por exemplo, a do Drummond, que me encanta, mas pode ser Anne Sexton, pode ser Camões, ou António Franco Alexandre. Varia muito. O Drummond é uma paixão antiga, tudo nele é maravilhoso. Tinha duas mulheres, sabia? E era comunista! Imagine, um homem livre assim e comunista. Aprende-se logo a não rotular pessoas. Não há padrões quando se trata de gente interessante, já reparou?

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Não sei dizer exactamente o que li antes ou vou ler a seguir, são sempre vários livros ao mesmo tempo. Estou sempre a ler, leio profissionalmente e leio por prazer. Mas apetecia-me ler Shakespeare agora, porque ando a pensar muito em figuras femininas fortes e cruéis e tenho saudades daquele inglês e daquela perfeição. A República de Platão também me anda na cabeça, precisava de o reler com calma. Ou a Iris Murdoch. Ou o Graham Greene. E poesia, claro, sempre. Poesia é mais reler do que para ler, como toda a gente sabe.

3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros

O meu pai só nos oferecia livros de presente. E tanto oferecia o Camilo e o Eça e o Ferreira de Castro, em edições de papel bíblia, como oferecia livros que ele não fazia a mais pálida ideia do que eram mas achava graça. Foi assim que recebi o Discurso sobre o filho-de-Deus do Alberto Pimenta, uma brincadeira com o Discurso sobre o filho-da-puta. O meu pai nunca percebeu o que me tinha oferecido! E fomos habituadas a ir à Feira do Livro de Lisboa (vivíamos no Alentejo) todos os anos. Lembro-me de ser muito pequenina e ir à feira do livro que havia na praça central e no jardim de Portimão. Nós íamos para a Praia da Rocha, e isto foi há tanto tempo que a Praia da Rocha ainda era pequenina e maravilhosa e bem frequentada. Terá sido em 73, por aí….

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

Agatha Christie, com toda a certeza, e antes os livros da Enid Blyton e da Odette de Saint-Maurice, e as bandas desenhadas da Disney, traduzidas para português do Brasil. A Mafaldinha, cujas piadas políticas me escapavam mas que eu adorava, foi de certeza formadora da minha atenção ao mundo e ao treino da ironia. Mas houve um episódio, entre muitos, que me parece mais forte para eu ser a leitora que sou hoje: foi a edição fac-similada do Portugal Futurista, que a Contexto editou e o meu pai me ofereceu, sem medir as consequências do que estava a fazer. Devorei aquela revista maravilhosa: o vocabulário que eu não conhecia, a veemência, as problemáticas tão longínquas do meu mundo provinciano; eu queria pertencer ali, queria ser o Marinetti, o Santa Rita Pintor, comecei a procurar na Enciclopédia Verbo tudo o havia sobre aquela época, descobri o Pessoa, o Sá Carneiro, o Almada e o Manifesto Anti-Dantas, a maravilha de poder escrever “merda” e dizer “merda” sem ficar de castigo. A partir daí eu quis ler tudo, ser tudo. E ainda quero.

5. Um local público onde goste de ler

Na praia, se não houver famílias aos berros. Numa esplanada, se não houver música de fundo nem mastigações audíveis. Nos cafés dos museus.

6. O seu recanto preferido de leitura (em casa)

Se a cama fosse um recanto, seria a cama. A minha casa é uma casa de livros, são eles que mandam, portanto o que mais há são recantos de leitura e gosto de todos – não caí na asneira de ter recantos em casa de que não gosto.

7. Uma biblioteca importante para si

A minha. E a Bodleian, em Oxford, onde passei uns tempos.

8. As livrarias que costuma visitar

Nem sempre visito as livrarias de que mais gosto porque nem sempre estão perto de onde eu estou. Mas as que recomendo são as pequenas, onde o atendimento é sério e ainda há livreiros: a Letra Livre e a Poesia Incompleta, claro. A Déjà Lu, em Cascais, que é uma livraria linda e solidária (sem fins lucrativos). A Flâneur. A Cotovia. A Assírio& Alvim.

9. Uma editora de que goste particularmente

A brasileira 34 e a 7 letras. As portuguesas Planeta Tangerina, Douda Correria, Cavalo de Ferro. A catalã Kriller 37. E a alemã Reklam, com os seus mini livros amarelos e um catálogo esplêndido.

10. Que livros gostaria de reler?

Todos os que gostei de ler. Assim, com muita saudade, já acima referi alguns mas há mais. Destes autores, qualquer livro: Camilo, Camões, António Ferreira, Sá de Miranda; no Brasil, Nuno Ramos, Sérgio Sant’Anna e Bernardo Carvalho, os russos, em particular Bulgakov, Mercê Rodoreda, Javier Marías, o Sandor Marai, as peças todas do Strindberg…. Esta pergunta é terrível e, na verdade, a resposta certa é simples e exclui enumerações. A resposta certa é: Os livros que eu gostaria de reler são todos os que me deram prazer. Todos os que gostei de ler.

11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

Ahahahahahaha.

12. Acessórios de leitura que não dispensa

Óculos e lápis ou caneta.

13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

Depende. Se não me prendeu porque não estou de maré mas percebo que pode não ser mau, guardo para lhe pegar depois e voltar a tentar. Mas se não me prende porque é mau, desisto e nem o quero em casa, que não tenho lugar para disparates.

14. Costuma ler sobre livros? Se sim, quais são as suas fontes?

Claro que sim, com certeza que sim! Os livros remetem uns para os outros. As notas de rodapé, as bibliografias são orientações de leitura, para dar dois exemplos óbvios.

15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade

“Toda a má poesia é sincera.”





Beijinhos a todas, Feliz Natal!


Marta

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