«Puxo o fio de lã»



Queridas Senhoras,

na passada sexta-feira tive o prazer de apresentar o livro Os Fios, de Sandra Catarino, na FNAC de Cascais, acompanhada da minha querida amiga Sandra, a autora, e de Maria do Rosário Pedreira, editora da obra. Partilho hoje convosco o texto que então li - e convido-vos a descobrir Os Fios, um livro belíssimo, perfeito para ler no aconchego das noites de inverno e para oferecer no Natal:


Eu estou aqui hoje para vos falar enquanto leitora. Na primeira apresentação pública d’ Os Fios, em Outubro, o jornalista Luís Ricardo Duarte assinalou que daí em diante o livro seria mais dos leitores que da autora. E temos podido assistir a isso mesmo, a essa apropriação, que enriquece e transforma este livro de cada vez que o vemos através do olhar de outrem. Também eu me apropriei d’ Os Fios - mas tive de esperar uns quatro anos até poder fazê-lo. Sou uma leitora privilegiada da escrita da Sandra e tive a sorte de poder acompanhar o processo de nascimento desta obra desde o seu primeiro esboço, vê-la crescer, amadurecer, ganhar contornos definitivos. Quando recebi o meu exemplar do livro recém-publicado, com esta capa belíssima de Maria Manuel Lacerda e uma dedicatória muito carinhosa manuscrita pela Sandra, olhei-o e percebi: isto é uma despedida. Já não temos mais nada a fazer juntos.

Mas estava enganada. Assim que a Sandra me convidou para estar hoje nesta apresentação, fui buscá-lo à estante. Li a primeira frase, «Puxo o fio de lã», o fio de lã puxou-me a mim e continuei a ler – ia dizer, como se o fizesse pela primeira vez. Mas a verdade é que estava, precisamente, a ler Os Fios pela primeira vez enquanto leitora. Estes eram os MEUS Fios. Já não se tratava do trabalho da Sandra, da obra em curso. Já não vejo vírgulas nem verbos transitivos indirectos. Estou no Fundo do Lugar e não no sofá da minha sala. Com agulhas imaginárias, cruzo os fios que leio com aqueles que guardo dentro de mim. Assim, durante uma tarde de domingo, nasceu uma coisa inteiramente nova. E eu percebi o que era quando cheguei a pouco mais de metade do livro – à página 112 – e li:

«Não nos deixeis cair em tentação; mas livrai-nos do mal». 

Quando eu era pequena, até ter idade para fazer valer a minha vontade, ir à missa fazia parte das rotinas semanais familiares. Eu gostava particularmente do Pai Nosso porque era sinal de que a missa estava quase a chegar ao fim – no entanto, incomodava-me aquele mas. «Não nos deixeis cair em tentação; mas livrai-nos do mal». Dei voltas à cabeça a tentar perceber em que sentido é que aquelas duas frases poderiam ser opostas. Este incómodo perdurou até ao domingo passado. Voltando à pág. 112:

 «Tinha o braço esticado de ódio e repetia com a voz esganiçada, «Não nos deixeis cair em tentação; mas livrai-nos do mal.» As outras agarraram a Maddalena e logo ali a tombaram, atando-lhe os pulsos, esfolando-lhe a pele dos joelhos nas asperezas da terra.» 

Foi aqui que percebi. Foi na união covarde das mulheres atemorizadas pelos olhos fundos de Maddalena e pelo passado obscuro da miúda e do seu pai que eu desvendei o mistério. Este mas não é adversativo, é preventivo. É um «mas, pelo sim, pelo não»; um sistema de segurança; uma confissão de incompetência: «Não nos deixeis cair em tentação; mas, pelo sim, pelo não, e sabendo nós de antemão que não somos muito bons a evitar as tentações, livrai-nos de todo o mal, oh Deus, antes que a gente se espalhe ao comprido.»

Munida desta nova compreensão do Pai Nosso, descobri n’ Os Fios um mosaico de retratos da incompetência humana. Vou tentar mostrar-vos alguns desses retratos sem desvendar demasiado. Mas, atenção, que a minha leitura não vos desalente – nestas páginas também se desenham histórias de redenção, de amor e da sublimação do amor, a amizade.

. Maddalena chegara àquele lugar numa noite de tempestade, febril, ao colo de um pai de fala estrangeira e com o poder de tocar violino de um modo tão belo quanto dorido. Duvidosos, aqueles dois, claro, não lhes conheciam a história e não davam grande coisa por eles. Um dia o medo do desconhecido (e daqueles olhos cinzentos) deu força às fracas da terra e correram com a miúda de lá para fora. Livraram-se do mal:

Pág. 113: «É melhor partires. Não te queremos cá.»

Não foram as primeiras a querer livrar-se de Maddalena. Clara, a cuidadora de Celeste, assusta-se com a amizade poderosa entre esta, que viu nascer e viu perder a mãe no mesmo dia, e a estrangeira dos olhos fundos. Talvez inveje a ligação cósmica que vê nascer entre elas e que perdurará nas notas do piano de Celeste. Pelo sim, pelo não, livra-se do mal:

Pág. 93: «Em chegando o fim da tarde acabou-se. A Antónia levou-me na conversa, mas eu torço o nariz, não vou com a cara da Maddalena, não gosto dos seus modos. E mais, as mulheres dizem que tem o diabo no corpo.» 

. Também Maddalena cortara as tranças por não querer ser a mulher em que a idade teimava em torná-la. Também Maddalena se quis livrar do mal de Maddalena:

Pág. 71: «Sentou-se à mesa com Francesco, entregou-lhe as tranças, pôs um lenço na cabeça e não falou do assunto.»

. Muito antes de tudo isto, num tempo em que não era costume as raparigas estudarem, Violeta e Antónia tiveram a sorte de passar pela escola e de conhecer um professor que lhes mandou rasgar folhas do caderno para fazer pássaros do Japão, que depois lançaram aos quatro ventos:

 Pág. 25: «… e os homens armados rondando a casa do professor, como se armassem cerco a um animal.»

Para que os seus filhos não caíssem na tentação da poesia, livraram-se os pais do mal. E o miúdo que corria o risco de ter-se perdido para todo o sempre cresceu para ser um homem a sério:

Pág. 133: «… de caçadeira ao ombro, entre copos de vinho tinto…» 

. Nas primeiras páginas encontramos as amigas Violeta e Antónia já bem longe dos bancos da escola, já bem longe da meninice, e é pelas suas vozes envelhecidas que vamos desbravando caminho. Uma traz no peito um pássaro agoirento; a outra traz na esperança mil pássaros de papel e um desejo. Ambas poderão, a seu tempo, soltar os pássaros que carregam. Há ainda uma terceira voz, a de Emília, que, sendo quem menos fala, é quem mais sabe – pois Emília conhece não apenas o que já foi, mas também o que há-de ser. Conhece não apenas o mundo dos vivos, mas também o dos mortos e o dos por nascer:

Pág. 33: «... no fim de contas não há como fugir. «A terra tudo cria e tudo come.»» 

  . Mas onde está então a redenção? Basta olhar com atenção para Samuel, de quem ainda não vos falei. É a minha surpresa, a minha carta na manga:

 Pág. 148: «Soube pela Emília que entrou pela floresta de trouxa às costas. Levava a candeia acesa e, visto de longe, era uma estrela caída entre as árvores.»

. Visto de longe, Samuel é um miúdo estranho que se fez homem, sempre estranho, mais próximo dos bichos que das pessoas. Entrou pela floresta de trouxa às costas, não sem primeiro cumprir escrupulosamente com todas as suas obrigações morais. Samuel, visto de longe, é uma estrela caída entre as árvores. E Maddalena, o que é feito dela? Vista de longe, é uma menina-mulher que não sabe o que fazer com as pequenas alegrias da sua existência solitária. Mas o que são eles quando vistos de perto?

Pág. 196: «Aos poucos, tudo se fazia constelação».



 «Puxo o fio de lã», o fio de lã puxou-me a mim. E tudo se fez constelação. O que será que vos espera aqui dentro?

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Beijinhos,
Marta

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