«Marta de manhã»: eu não estou aqui, isto não está a acontecer


Aqui em Coimbra abundam os álamos — ou choupos, como são mais frequentemente chamados em Portugal. Prefiro a primeira designação, é mais musical, e tem uma história associada que conheci através do blogue do linguista Helder Guégués: é de «álamo» que nasce a palavra «alameda», uma rua ladeada de álamos (ou outras árvores). Mas não há grande volta a dar: na cidade do Choupal, os choupos são choupos. Recebemos agora, com a chegada da Primavera, a boa notícia de que já se pode ir passear para a Mata do Choupal, vedada ao público desde a passagem do furacão Leslie. É também do Choupal (esteja ou não esteja encerrado) que nos chega em Março o anúncio do fim do Inverno, quando começamos a ver milhafres a sobrevoar a cidade — ainda antes das andorinhas.

Depois de ter lido O Barão Trepador, de Italo Calvino, há cerca de um ano, não mais olhei os choupos que vejo da janela de minha casa sem pensar em Cosimo, que, aos 12 anos, imbuído de rancor pela família, em particular, e pela sociedade, em geral, trepou a um álamo do jardim de casa e prometeu nunca mais voltar a pousar os pés no chão. E cumpriu.

P. 5:
«Foi a 15 de Junho do ano de 1767 que Cosimo Piovasco de Rondó, meu irmão, se sentou pela última vez entre nós. Estávamos na sala de jantar da nossa villa de Ombrosa e a janela emoldurava a frondosa ramaria do enorme álamo do parque. Era meio-dia e, seguindo uma velha tradição, a nossa família sentava-se à mesa sempre àquela hora, não obstante se tivesse espalhado já entre a nobreza a moda, originária da pouco madrugadora corte de França, de almoçar a meio da tarde. Lembro-me de que soprava uma leve brisa vinda do mar e as folhas buliam. Cosimo teimou:
— Já disse que não quero e não quero! — afastando, com um gesto, o prato de caracóis.
Não havia memória de mais grave desobediência.»


Outra história de rancor familiar e de árvores me trouxe à memória esta leitura. Foi no inverno de 1991 que assisti, em Almada, à encenação de Joaquim Benite da peça Dias Inteiros nas Árvores, de Marguerite Duras. As árvores são, neste texto em concreto, um pormenor carregado de simbolismo: o filho que, em criança, escapava da escola para passar os dias inteiros a subir a árvores é agora um adulto cuja indolência a mãe quer continuar a alimentar, num ciclo de despeito e dependência mútuos construído ao longo de muitos anos.

De volta a Cosimo, vamos folheando o livro e acompanhando os seus dias inteiros nas árvores durante toda a sua vida. Engenhoso e alimentado pelo orgulho, desenvolve recursos e técnicas que lhe permitem abrigar-se, caçar e pescar e até conviver com os seres terrestres que habitam o chão do vasto território que consegue cobrir, passeando de árvore em árvore. Cosimo não é exactamente um misantropo e tem até uma vida amorosa bastante agitada — mas, de qualquer forma, gosta de salvaguardar as devidas distâncias. A prova disso é o seu (inacabado) Projecto de Constituição para Um Estado Ideal Fundado em cima das Árvores:


P. 211:
«O epílogo do livro deveria ter sido este: o autor, tendo fundado o Estado Perfeito em cima das árvores, e convencido toda a humanidade a aí se estabelecer e viver feliz, descia para habitar sobre a terra que ficara deserta.»

Após ter dado guarida a um temido salteador e se ter visto obrigado a alimentar o feroz apetite de leitura de que sofria o bandido, Cosimo foi contagiado pelo mesmo mal e passou a devorar conhecimento. Quando em dúvida, correspondia-se com as pessoas mais inteligentes do mundo, mais actualizadas na matéria que, naquele momento, lhe interessava. E partilhava a sua sabedoria com os povos a seus pés, intervindo activamente na vida da sociedade, assolada por diversas preocupações (uma delas, de seu nome Napoleão de Bonaparte).
Personagem célebre um pouco por todo o lado, mantém-se, no entanto, sempre — ou quase sempre — perto da casa da família, como se vivesse dividido entre a vontade de desaparecer e a necessidade de pertencer.

P. 305:
«Se já na terra a juventude é coisa que passa depressa, bem podeis imaginar como não será em cima das árvores, onde tudo está destinado a cair: folhas, frutos e até os ramos velhos. Cosimo estava velho.»

Tem 65 mal tratados anos no dia em que observa um balão, controlado por aeronautas ingleses, em testes naquela zona. Por um golpe de sorte, o engenho descontrola-se momentaneamente e aproxima-se de Cosimo o suficiente para que este estenda a mão e levante voo com ele.

P. 317:
«Assim desapareceu Cosimo, e nem tão-pouco nos deu a satisfação de voltar a terra mesmo morto.»



Thom Yorke, o vocalista dos Radiohead, em entrevista à BBC2 em 2006, disse que se tivesse que escolher uma canção pela qual ser lembrado, escolheria esta, How To Disappear Completely, do álbum KidA. Porquê? «Porque acho que é a coisa mais bonita que alguma vez fizemos.»

Se pudesse escolher uma coisa pela qual ser recordado, aposto que Cosimo escolheria esta saída triunfal, a sua sagração plena como Barão Trepador, o seu orgulho cumprido, a sua palavra honrada. Quando, finalmente, conseguiu desaparecer completamente. A coisa mais bonita que alguma vez fez.

Em Portugal, desaparecem cerca de quatro mil pessoas por ano - e, se bem percebi, cerca de metade fazem-no propositadamente e não querem ser encontradas. Terão as autoridades alguma vez considerado estender as buscas às copas dos álamos?


Bom dia a todos,
Marta

Comentários