«Marta de manhã»: eu sabia que não podia mudar nem reparar nada, agora


Esta semana foram divulgados os finalistas da edição de 2019 do prémio europeu de literatura Jean Monnet e lá está o nosso Gonçalo M. Tavares, lado a lado com Julian Barnes e Jón Kalman Stefánsson, entre outros, claro: estes são os meus preferidos. Lídia Jorge já foi distinguida com este prémio em 2000. Saberemos em Novembro se será mais um português a ganhá-lo este ano.
A notícia teve uma especial graça para mim porque Barnes e Stefánsson são os dois nomes no topo da lista de futuros «Marta de manhã»; bem, hoje Barnes já é tempo presente. 
Uma curiosidade: o nome de Stefánsson estava mal escrito no site oficial da entidade que atribui este prémio, a Littératures Européennes Cognac. Enviei-lhes uma mensagem a avisar do desacerto ortographique – responderam-me, agrdecendo, e corrigiram-no. A Internet tem esta característica peculiar de permitir-nos modificar o passado. Para quem nunca tenha dado pelo engano, é como se ele nunca tivesse existido.

Modificar o passado é um conceito estranho, parece coisa de ficção científica, e no entanto é precisamente nele que assentam as psicoterapias cognitivo-comportamentais, às quais eu ofereci alguma resistência quando passei pelo ISPA. Soavam-me a cruzamento de Bernardo Soares com Júlio Verne. «Porque as coisas são como nós as sentimos — há quanto tempo sabes tu isto sem o saberes? — e o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las», adverte-nos o heterónimo de Pessoa n'O Livro do Desassossego. Com retroactivos, garantem os psicoterapeutas modernos. Continuo a preferir o meu Desassossego puro.

Voltando a Julian Barnes e ao seu O Sentido da Vida: No fim do liceu, Tom Webster e os seus amigos conheceram Adrian Finn, o apaixonante e intrépido pensador, que parecia saber muito mais da vida que os outros todos juntos.

P. 16:
«A mãe fora-se embora há uns anos e deixara o pai a tratar de Adrian e da irmã. Isto muito antes de se usar o termo "família monoparental"; nesse tempo era ainda um "lar desfeito" e Adrian era a única pessoa que conhecíamos oriunda de um deles. Isso deveria ter-lhe dado um reservatório repleto de raiva existencial, mas por qualquer razão não deu; dizia que amava a mãe e respeitava o pai. Em privado, nós os três examinámos o caso dele e arranjámos uma teoria: que o segredo duma vida familiar feliz era não haver família - ou, pelo menos, a família não viver em conjunto. Feita esta análise, invejámos Adrian ainda mais.»




Encontramos Tom já reformado, divorciado, acomodado — com um relativo conforto — até que uma carta vem obrigá-lo a mergulhar nas memórias daquele tempo em que tudo parecia estar por acontecer. Como é que se passa disso para o tempo em que tudo parece ter acontecido — e da forma errada, ainda por cima — num piscar de olhos?




Foi precisamente por sofrimento de amor que se afastaram os dois amigos muito cedo, num episódio digno da «grande literatura», com a sua boa dose de tragédia. Tom tem a sua interpretação dos factos bem cimentada. Ou tinha, até aquela carta ter feito descarrilar o até então sedativo comboio das suas recordações.

P. 69:
«Vivemos com suposições tão fáceis, não vivemos? Por exemplo, de que a memória é igual aos acontecimentos mais o tempo. Mas é tudo muito mais acidental do que isso. Quem foi que disse que a memória é aquilo que pensávamos ter esquecido? Para nós devia ser óbvio que o tempo não atua como fixador, e sim como dissolvente. Mas não é conveniente — não é útil — acreditar nisso; não nos ajuda a seguir com a nossa vida; por isso ignoramo-lo.»


Também eu recebi uma carta há dias. Do passado irrompeu um comboio em fúria e eu embarquei, não porque querer fazê-lo, mas porque era a única forma de não ser atropelada por ele. Se os psicoterapeutas cognitivo-comportamentais me oferecessem a possibilidade concreta de modificar uma coisa no meu passado, um dia, uma palavra apenas, eu fá-lo-ia sem hesitar. Sou o oposto do Meursault de Camus: arrependo-me sinceramente de um crime que não cometi.

P. 103:
«Depois pensei mais em Adrian. Desde o princípio, vira sempre mais claramente do que nós. Enquanto nos deixávamos embalar pela neurastenia da adolescência, imaginando que o nosso descontentamento rotineiro era uma reação original à condição humana, Adrian já olhava mais em frente e mais à sua volta. Também sentia a vida mais completamente — até talvez, sobretudo, quando concluiu que não valia a pena. Comparado com ele, eu sempre fora confuso, incapaz de aprender muito com as poucas lições que a vida me dera. Do meu ponto de vista, aceitava as realidades da vida e submetia-me às suas necessidades: se isto, então aquilo, e assim passavam os anos. Do ponto de vista de Adrian, eu desistia da vida, desistia de a examinar, tomava-a como a via. E assim, pela primeira vez, comecei a sentir um remorso mais geral -—um sentimento algures entre autopiedade e aversão a mim próprio — em relação à minha vida toda. Toda. Tinha perdido os amigos da minha juventude. Tinha perdido o amor da minha vida. Tinha desistido das ambições que acalentara. Tinha querido que a vida não me incomodasse demasiado, e tinha conseguido — e como isso dava pena!»




Nas histórias de ficção científica, quem viaja ao passado aprende à sua custa que a interferência reverberará através das cordas do tempo e que nada, nunca mais, será como dantes. Nesta história de Julian Barnes, é o passado que viaja até Tom Webster, forçando-o a interferir com as suas memórias e a compreendê-las de uma forma profundamente diferente. É impossível saber para onde se irá dirigir este seu comboio desgovernado.

P. 151:
«Eu sabia que não podia mudar nem reparar nada, agora.»




Também sou o oposto do Webster de Barnes, afinal. Viajo sempre virada para a frente.

Um bom dia a todos.
Marta

Comentários

  1. Muito bom. Gostava de poder captar 'melhor' o sentido do conteúdo das páginas transcritas, mas a minha capacidade interpretativa e analítica não chega a tanto. É pena.

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