«Marta de manhã»: o que quer que eu escolha vai dar ao mesmo



Mudam-se os tempos e a expressão «Killing an Arab» muda de significado. Tinha eu 11 anos quando, numas férias em Paris, comprei os meus dois primeiros álbuns dos The Cure, em cassete — então, Killing an Arab era apenas uma das faixas brilhantes de Standing on a Beach, que eu ouvi, e ouvi, e ouvi. Ainda ouço, na verdade; até comprei recentemente o CD (evoluí desde os anos 80, mas parei nos CD — gosto de ter objectos musicais.)

Uns anos depois disto, em 1990/91, Robert Smith (o vocalista dos The Cure, para vocês, habitantes de outro planeta, que não reconheçam o nome) viu-se na obrigação de dar uma conferência de imprensa a explicar que a canção de 1979 não tinha nada de racista nem de violento, mas tratava-se, sim, de uma homenagem sua, escrita enquanto adolescente, ao livro O Estrangeiro, de Albert Camus. «It was totally surreal, explaining Camus to a sea of utterly bemused faces», recorda Smith em entrevista ao The Guardian. Tholhurst, co-fundador dos The Cure e biógrafo da banda, explica, numa entrevista de 2016: «It was about alienation and existentialism — things more relevant to us then. Obviously events of the last two decades have changed the perception of the song's meaning. Totally erroneously I might add, as it has nothing to do with racism or killing at all.»

O assunto não ficou por aí. De tal forma que houve alturas em que Robert Smith alterou ligeiramente a letra do refrão em actuações ao vivo, para não deixar a canção de fora do alinhamento mas, ainda assim, evitar ter de continuar a dar explicações de literatura francesa. Eis que no ano passado, no grandioso espectáculo de comemoração do 40º aniversário da banda, Smith não só manteve a letra original como escolheu este tema para fechar o concerto em apoteose. Eu não estive lá (eu sei, eu sei, imperdoável), mas, o que é que querem, vivo o que não vivo por interpostas escritas e, assim, acompanhei a imprensa da especialidade ao detalhe. Talvez seja da idade, talvez tenha decidido que a canção é dele e que chega de deixar que outros se apropriem da sua obra. O mundo que leia Camus, se precisar assim tanto de compreender o significado da letra.

E agora perguntam vocês: mas por que raio é que o mundo haveria de estar preocupado com uma canção de 1979 de uma banda britânica pós-punk com um vocalista despenteado e de lábios (mal) pintados? Ui, nem vos passa pela cabeça a tinta que isto já fez correr. Musicólogos, politólogos, comités anti-discriminação, muita gente emitiu já a sua opinião sobre o assunto. Há até quem leve a coisa até Camus e questione as motivações profundas do autor ao colocar um árabe anónimo no fim do caminho das balas displicentemente disparadas por Meursault.
Acontece que eu só li O Estrangeiro no ano passado. Não, não tenho nenhuma justificação plausível para isto. Tenho, sim, a mesma interpretação de Smith e Tholhurst e tantos outros da canção da discórdia — alienação e existencialismo:

«I can turn
And walk away
Or I can fire the gun
Staring at the sky
Staring at the sun
Whichever I chose
It amounts to the same
Absolutely nothing»


Lembro-me de, a certa altura da minha vida, ali muito perto dos 20, ter chegado à conclusão de que o excesso de sinceridade é uma manifestação de egocentrismo. Dizer uma verdade apenas para nos despejarmos desse fardo e deixar o outro a acartar com o peso é cruel. E ainda não conhecia Meursault, o homem incapaz de desviar o curso da verdade nem para benefício alheio nem para seu próprio benefício.
«Na nossa sociedade, todos os homens que não choram no enterro da sua mãe correm o risco de serem condenados à morte» — assim resume Camus esta sua obra. Meursault é uma personagem perfeita, desenhada pelo escritor desde a primeira linha sem uma única falha. Um homem que não sabe pensar, agir ou comunicar sem ser na maior observância da verdade que lhe seja possível. Ele não decide isto, sequer: ele é-o, simplesmente. «Longe de ser um insensível, o que o move é uma paixão profunda e tenaz, a paixão do absoluto e a verdade, uma verdade negativa, a verdade de ser e de sentir», explica ainda Camus.

E porque quando tem fome aceita que lhe matem a fome, e porque quando está cansado e com calor fica verdadeiramente incomodado, foi acusado de ser indiferente à morte da própria mãe. O que não veio nada a calhar no seu julgamento pelo assassínio de um homem desconhecido, na praia, com quatro (ou cinco) tiros. Mas estava tanto calor naquele dia...




«Oh, Mersault!», exclama Robert Smith a dez segundos do final da canção.

P. 76:
«"Enfim, estão a acusá-lo de ter assassinado um homem ou de lhe ter morrido a mãe?" O público riu-se. Mas o procurador levantou-se outra vez, ajustou a toga e declarou que era preciso ter a ingenuidade do ilustre defensor para não sentir que entre as duas ordens de factos havia uma relação profunda, patética, essencial. "Sim — exclamou ele com força —, acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso."
(...)
Em seguida, tudo se passou muito depressa. A audiência foi suspensa. À saída do tribunal e ao subir para o carro, reconheci durante breves instantes o cheiro e o calor das tardes de Verão. Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que tantas vezes me sentira contente. O pregão dos vendedores de jornais no ar já desoprimido, os últimos pássaros no largo, o grito dos vendedores de sanduíches, o lamento dos eléctricos nas pronunciadas curvas da cidade, e este rumor do céu antes que a noite desça sobre o porto, tudo isto recompunha, para mim, um itinerário de cego, que eu conhecia muito antes de entrar na prisão. Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que então me aguardava era sempre um sono ligeiro e sem sonhos. E, no entanto, alguma coisa se modificara pois, com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela que reencontrei enfim. Como se os caminhos familiares, traçados nas noites de Verão, pudessem conduzir tanto às prisões como aos sonos inocentes.» 

«Whichever I chose
It amounts to the same»


Onde vos teria levado a vossa vida se tivessem sempre pensado, agido e comunicado na mais rigorosa correspondência com aquilo que sentiam? Na deriva da mais absoluta observância da verdade? A que praias? A que prisões?



O ano passado foi bem preenchido para Robert Smith. Para além do grande concerto dos 40 anos dos The Cure, o músico foi convidado para ser o curador da 25ª edição do mítico festival Meltdown.
Numa entrevista que deu a Matt Everitt para a BBC 6 Music, Smith trouxe-me duas revelações dignas de nota. Uma, que o envolvimento nesse evento despertou nele a vontade de escrever novas canções. E outra, a forma deliciosa como contactou os artistas que escolheu para esse magnífico cartaz, rematada com uma entoação humorística que só os britânicos conseguem sacar na perfeição:

One of the organizers I was speaking to said that she believed that you wrote a letter, you actually wrote handwritten letters to all the people. Is that true? Because that was brilliant!
 Yes, I wrote to everyone I was inviting, all artists...
 Oh, that's so nice!
 ... because I felt that if I was invited I would like to get a letter from whoever was inviting me. I was brought up properly, you see?

Eu poderia escrever a história da minha vida com canções dos The Cure. Venha de lá esse álbum novo, sr. Smith: continuo a ter muito que contar.


Um bom dia a todos.
Marta

Comentários