Humilhação


Queridas Senhoras,

ainda me lembro da estranheza que causou o filme Revelação (Disclosure), de Barry Levinson, com Demi Moore e Michael Douglas. Toda a gente se recorda  da inversão de papéis do enredo: mulher poderosa assedia homem em contexto laboral. O filme é de 1994, eu tinha 20 anos, é de supor que já tivesse reflectido alguma coisa sobre questões de assédio, misoginia, violência de género. De facto, julgo que estava muito pouco desperta para essa realidade.

O que causa estranheza no filme é a inversão de papéis, sim, mas por esta razão: como se o "normal" fosse o assédio por parte do homem. O chefe que atira bocas, comenta a roupa ou o corpo, faz convites indesejados. Isso seria a "normalidade" com que todas as mulheres teriam de lidar, tão incómoda como um par de sapatos apertados ou andar de transportes num dia de chuva forte. A situação de assédio encenada fora do contexto habitual e esperado resulta no que de facto é: uma cruel humilhação.

Até certo ponto, compreendo que quem cresceu, socializou e trabalhou décadas num contexto permissivo e tolerante em relação a estes comportamentos tenha dificuldade em lidar com tudo o que estamos a viver agora. Atitudes que eram consideradas galanteios são hoje repudiadas. De uma forma ou outra, todos crescemos num ambiente social e cultural que não só tolerava como incentivava os avanços do homem e, na mesma medida, o recato da mulher. Um ambiente que muitas vezes não preparava (não prepara?) os homens para a rejeição. Imagine-se a clássica situação do rapaz cheio de encantos e mesuras que tenta conquistar uma rapariga. Quando esta repele os seus avanços, o "príncipe" transforma-se de num "monstro" para quem todas as mulheres são putas.

O tema é complexo, vamos andar muito tempo a discutir todas estas questões até chegarmos a uma nova normalidade. Todas as relações sociais são difíceis, sobretudo as relações de poder. Idealmente, ninguém deveria utilizar o seu poder para humilhar ou intimidar alguém. Qualquer forma de humilhação ou intimidação (para usar a palavra que a escritora Djaimilia Pereira de Almeida elegeu) é um nojo. Ponto final.

O António Guerreiro assina esta semana uma crónica sobre a Escola no tempo da ditadura na qual faz um retrato bastante agressivo da relação professor-aluno nesse tempo. Impressionou-me. Claro que já tinha ouvido relatos semelhantes, talvez de pessoas mais velhas. Impressionou-me que uma pessoa de 60 anos (apenas mais 15 que eu) tenha memórias tão horríveis da escola. Hoje ninguém contesta que a relação entre professores e alunos deve ser baseada no respeito mútuo. Julgo que não podemos dizer o mesmo das relações laborais. O ambiente nas empresas e nas instituições ainda é muito marcado pela prepotência das chefias, por uma hierarquia bacoca e, sim, por cúpulas demasiado masculinizadas, homens que mandam demais, mandam mal e abusam do seu poder.

Qualquer relação saudável é baseada no respeito mútuo, entre iguais, independentemente da hierarquia subjacente. Já disse aqui e repito: usar qualquer forma de poder para abusar dos outros (seja física, mental ou emocionalmente) é algo que nos deve envergonhar a todos. E mais do que as leis, é a condenação social que pode ajudar a diminuir estes comportamentos. Tolerância zero para abusadores, assediadores, perseguidores, gente que humilha, intimida, coage ou apenas insinua, porque muitas vezes são apenas insinuações. 

Percebo a preocupação de alguns homens que andam com medo de ser acusados ou denunciados. Que não sabem se o que fizeram em 1994, quando a Demi Moore humilhava o Michael Douglas, pode ter (ainda) repercussões. Também não acho que o mais importante seja "dizer nomes". Não é. Podemos assumir que quase todos os homens, num momento ou outro da sua vida, assediaram uma mulher. O mais importante é que cada vez mais homens (e mulheres) considerem esse comportamento intolerável, seja sob que forma for.

Até para a semana,

Céu

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