Queridas Senhoras,
às voltas com os diários de Ivone Mendes da Silva, tentando arrumar ideias para compor um trabalho escrito, pergunto-me porque vai uma distância tão grande entre esta prosa do quotidiano e tantos relatos desengraçados que lemos todos os dias nas redes sociais, em que as pessoas descrevem onde estão e com quem, o que fazem, o que comem, o que pensam. Ambos são provas de vida, confirmações de existência*.
A linguagem é a primeira diferença, claro. A escrita de IMS é muito bela e atenta. Mas julgo que a diferença que mais importa tem a ver com verdade, autenticidade. Intuitivamente, parece-me que é sempre isso que me atrai ou repele na leitura de um texto. Começo a ler qualquer fragmento, relato, opinião, desabafo, confissão, e se me cheira a falsidade é mais que certo desinteressar-me e interromper de imediato a leitura. É mais difícil explicar de onde vem a sensação de falsidade, mas tentemos.
Máscaras todos usamos, não é aí que está o problema. Nem tão pouco me atrai a sinceridade desbragada do "eu cá digo tudo o que penso". Nem pensar, credo. Ninguém diz tudo o que pensa, nem a si próprio. Não sabemos formular tudo o que pensamos. Os diários servem para descobrir o que pensamos. Procurar a frase exacta ajuda a clarificar o pensamento. A sinceridade exacerbada usada nas redes sociais, a verborreia sentimentalista ou odiosa, o exagero em tudo, no elogio, na crítica, na indiferença, a pressa em tomar posição, em anunciar ou comentar algo, em expelir informação, teorias, opiniões, tornam tudo indistinto e sem valor.
Tomemos como exemplo uma blogger, influencer ou instagrammer que é "obrigada" a tudo descrever e comentar, seja o brunch, os rankings escolares, a situação na Palestina ou os bikinis para o próximo Verão. É muito raro já conseguir ler, e muito menos crer, numa única linha escrita nesses canais, por me soar tão programado.
Ok, se calhar não faz sentido estabelecer uma comparação entre matéria literária (os diários de IMS) e a verborreia das redes sociais. Mas é um facto que estes diários (como outros, por exemplo os de Ana Cássia Rebelo) nasceram na Internet. Não é o meio que importa. Podemos ler bela poesia no Facebook ou num volume da Assírio & Alvim. A linguagem também não explica tudo, pois uma prosa propositadamente cuidada e "literária" pode soar igualmente falsa. Só posso concluir que a autenticidade não se programa, trabalha ou imita. Ou é ou não é.
Até para a semana,
Céu
*Acho que é a primeira vez que faço um post com nota de rodapé. A confirmação da existência, Silvina Rodrigues Lopes, Dedalus – N.º 7/8 (Literatura e Filosofia), 1997-2000, Edições Cosmos.
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