Enquanto há vida


Queridas Senhoras,

vão pensar que me estou a repetir, que digo isto de muitos livros, mas há nuances, queridas senhoras, há nuances. Quando digo que não consegui parar de ler Índice Médio de Felicidade, estou a dizer que avancei na leitura enquanto ia pela rua, enquanto atravessava a estrada (sim, mãe, com muito cuidado). É a esse género de não conseguir parar que me refiro.

A história de Daniel, contada na primeira pessoa como um relato a um amigo que está preso, é a história do nosso amigo de infância, do colega de liceu, de faculdade, de trabalho. É a nossa história chapadinha, por isso que outra coisa podemos fazer a não ser ler sofregamente?

Em 2013 Daniel tem 37 anos e a vida tal como ele a conhece desaparece em menos de nada. O mundo composto de estruturas de apoio, confiança, metas, começa a desabar. Em pouco tempo, Daniel perde o emprego, vê a família (mulher, dois filhos) afastar-se 400 quilómetros, o banco fica-lhe com a casa. Os dois melhores amigos, um está na prisão, o outro tem pânico de sair à rua e está há doze anos fechado em casa. Entretanto descobre que o filho adolescente do amigo presidiário anda a maltratar sem-abrigo e a postar os vídeos no youtube. Quanto aos seus próprios filhos, o mais novo cria aviários na internet e quer ser budista para ser mais feliz. A mais velha, mente brilhante, acha que não é assim tão importante estudar porque vamos acabar todos como escravos dos chineses. Ninguém disse que o século XXI ia ser fácil.

Daniel não somos nós. É um concentrado de nós, uma versão em tudo exacerbada. De esperanças, medos, desgraças, lutas. Tomáramos nós ser como ele. Daniel é um arquétipo, um herói da crise, um pai do caraças, um amigo que não falha, um empreendedor, um faz-te-à-vida levado às últimas consequências.  O tipo dorme no carro (mais tarde no antigo escritório insolvente), e nem um só dia deixa de se levantar, vestir, sorrir para o espelho.

Daniel cresceu como muitos de nós, cheio de confiança, segurança, afectos, projectos. Depois veio a internet, a crise, a Uber (não havia Uber ainda, quatro anos é uma eternidade). Mas ele traçou um Plano. O plano admite desvios, falhanços, vias alternativas, mudanças. Só não admite a desistência. Isso nunca esteve escrito.

Beijinhos a todas,

Céu

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