Queridas Senhoras,
Arturo é um miúdo só, mas nem por isso infeliz, que cresce como giesta na belíssima ilha napolitana de Prócida, onde «as portas estão todas fechadas e a amizade não tem boa fama.»
O pai de Arturo não pára muito tempo por lá. Desde que a mulher morreu a dar à luz, está constantemente de partida para viagens misteriosas - os seus regressos são os momentos altos da vida de Arturo, que ama aquele pai alto e louro, intrépido e arrogante, superior a todos os seres humanos que conhece e que imagina, e que um dia o levará com ele a ver o mundo. Assim se alimenta o rapaz de espera e de esperança, para depois viver os seus dias a explorar a paisagem natural da ilha, a passear de barco e a ler.
«Apesar da nossa abastança, vivíamos como selvagens. Poucos meses depois do meu nascimento, o meu pai partiu para uma das suas viagens e esteve ausente quase meio ano. Deixou-me nos braços do nosso primeiro criado, que era muito sério para a sua idade e que me criou com leite de cabra. Foi este mesmo criado que me ensinou a falar, a ler e a escrever; depois instruí-me sozinho, lendo os livros que encontrava em casa.»
A casa é um palacete herdado de um homem temido pelo seu ódio às mulheres, cuja única amizade na ilha foi Whilhelm Gerace, o pai de Arturo. Outra herança, a quinta do avô do rapaz, providencia alimentos com fartura. E assim parecem estar criadas as condições para uma vida perfeita. O isolamento, neste caso, não é sinónimo de solidão. Arturo faz-se acompanhar pelo mar, pela cadela, pelas personagens dos livros que lê e pelos seus amores. É um miúdo que ama. Ama devotamente a mãe que nunca conheceu, o pai que, na verdade, mal conhece, e mais tarde a madrasta, trazida pelo pai de Nápoles (uma miúda muito católica e muito tímida, praticamente da sua idade). Bem, na verdade, à madrasta ama tanto quanto odeia, mas não vale a pena contar-vos tudo.
No entanto, não acredita no amor.
«De resto, exceptuando a maternidade da minha mãe, nada me parecia importante no povo obscuro que eram as mulheres; também não estava muito interessado em penetrar os seus mistérios. Todas as grandes acções que me fascinavam nos livros tinham sido realizadas por homens, nunca por mulheres. A aventura, a guerra e a glória eram privilégios viris. As mulheres, pelo contrário, eram o amor, e nos livros falava-se de personagens femininas reais e extraordinárias. Mas eu suspeitava que tais mulheres e também aquele sentimento maravilhoso do amor fossem somente uma invenção dos livros e não uma realidade.»
Passam alguns anos e, claro, como em todos os crescimentos, caem algumas das guardas e começam os embates com a realidade. A primeira paixão, que o leva à beira da loucura; a descoberta do sexo com uma jovem viúva que o seduz e que o choca ao seduzir outros homens; e a desilusão que o pai acaba por se revelar. Um dia, parte. Pela primeira vez na vida, embarca no vapor que tantas vezes viu atracar e zarpar. É ainda um miúdo mas também já é suficientemente homem para saber que o seu lugar já não é ali. Sabe-o, mas sente-o como uma amputação.
«- Ouve. Não tenho coragem de olhar para Prócida enquanto se afasta, se esfuma e se torna uma espécie de coisa cinzenta... Prefiro fingir que nunca existiu. Por isso, até ao momento em que já não se vir nada, é melhor que eu não olhe nessa direcção. Avisa-me depois.
E fiquei com o rosto escondido no braço como que tomado de um mal-estar sem pensamentos até que Silvestro me abanou com delicadeza e me disse:
- Eia, Arturo, já podes olhar.»
A escrita de Elsa Morante é uma escrita de pormenores, cozinhada em banho-Maria, muito atenta a cada pequena oscilação da incidência da luz do sol ou a cada oscilação de pensamentos ou estares de alma. «Arturo sou eu», disse um dia a mulher que nunca aceitou que o mundo onde vivia permitisse que o ódio e a diferença brotassem do solo como ervas infestantes, enquanto que o amor se tornava um bem raro e efémero. Mulher de paixões cegas. Como Arturo, de facto.
Beijinhos a todas,
Marta
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