Ainda ontem

Ilustração: Alice Gomes

Queridas Senhoras,

aquela conversa de viver o momento presente. Não entendo. Sim, ok, estar presente, não deixar a mente vogar pelo passado ou pelo futuro porque só o presente existe. Tudo bem, mas não há nada tão interessante como a passagem do tempo. O tempo é um recurso valioso, a memória é uma coisa prodigiosa. Nada dura, nada permanece, vamos percebendo isso. Aceito a ideia de criarmos algum desapego, pois tudo acaba por desaparecer. Mas não abdico da mitologia do passado. Na última de aula Arte e Ensaio, lemos um texto de William Hazlitt intitulado «On The Feeling of Immortality in Youth». É claro que quando somos jovens não pensamos que as coisas vão desaparecer. Lugares, casas, amigos, família.

Por exemplo. Quando eu era criança, havia uma gelataria ao cima da rua dos meus avós. Criei toda uma mitologia à volta deste lugar, ao ponto de já não saber se realmente existiu. A passagem do tempo lançou um véu encantatório sobre esta memória. Se tento apurar os factos, procurar provas da existência da gelataria, não encontro. Parece sortilégio tal lugar ter existido numa rua anónima do centro da Amadora nos anos 80. Suponho que não seria vulgar na época. No Verão, frequentávamos as gelatarias da Costa da Caparica, mas ter uma à porta de casa, como se estivéssemos sempre de férias? Gosto de efabular à volta desta memória. Espero que nenhum leitor do blogue venha agora dizer que os gelados não eram nada de especial ou que a Dona Alice não era muito simpática. A seguir vão dizer o quê? Que a leitaria do sr. Vítor não tinha aqueles boiões enormes cheios de rebuçados e cheirava demasiado a vinho?

Todos temos a nossa própria mitologia do passado feita de lugares, objectos, acontecimentos, por mais banal que tenha sido a nossa infância e adolescência. Não há infâncias banais. Não há banalidade que resista à passagem do tempo. Se quisermos, se formos dados a isso e trabalharmos bem a nossa mitologia, tudo adquire significado. Há inúmeros exemplos na ficção, mas ocorre-me agora a série This is Us que joga de forma exímia com as várias linhas temporais, sendo nisso que reside o grande fascínio da história.

O momento presente é muito zen, nada contra, mas o que somos é o que fomos, o tempo que passou, as memórias que construímos e que levamos para um futuro incerto. Havemos de ir ao futuro, sim, mas nunca deixaremos de voltar ao passado. O futuro configura toda uma outra mitologia do desconhecido, muito mais complicada para mim. Não sei falar do futuro. Mas isso talvez dê outro post.

Até para a semana,

Céu 

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