Como viver


Queridas Senhoras,

já sabemos que a vida anda estranha e se nos pomos a pensar nisso (e há tempo para pensar, lá isso há) ainda mais estranha fica. O que é viver? Como viver?  As perguntas são boas para as aulas de Filosofia, mas não são só. Acho que uma das grandes frases da nossa literatura é "viver todos os dias cansa". É uma boa frase que encerra também uma discussão filosófica.

Hoje ouvi de raspão uma entrevista com Jerónimo de Sousa em que o líder do PCP dizia «temos de recuperar rapidamente a alegria de viver». Fiquei a pensar a nisto, se tenho andado a viver com alegria ou não, e concluo que sim. Acordo em geral animada e com vontade de começar um novo dia. É importante dizer que há um aspeto que contribui para isto: a certeza de que não me vou ver envolvida em eventos indesejáveis. Porque não há eventos de tipo nenhum. Já se falou bastante do facto de a pandemia ter vindo facilitar a vida de quem não é fã de grandes sociabilidades. Não diria que é esse o meu perfil, mas sem dúvida que há uma série de eventos de ordem profissional e social não muito agradáveis, os chamados fretes, que agora simplesmente desapareceram do mapa. O MEC tem uma crónica ou entrevista (não recordo qual) onde explica muito bem a satisfação que é ter a desculpa perfeita para não comparecer em lado nenhum, com a vantagem de não sermos considerados chatos, pouco sociáveis, umas bestas. «Oh, adorava ir ao jantar... mas não vai haver jantar este ano, pois não? Que pena, estava mesmo a apetecer-me.» Não, não estava, é uma seca e agora podemos safar-nos com total dignidade.

Portanto, não há eventos, não há fretes, não há grandes compromissos. Há o trabalho, para quem o tem, há uma vida familiar intensa, há as saídas para abastecimento e as caminhadas higiénicas. Por um lado, parece uma vida estúpida — trabalhar, comer, comprar, andar, dormir — mas por outro há um despojamento que é de certa forma libertador. E a leitura ajuda sempre, e muito, a dar significado a tudo. Claro que falta muita coisa (a vida cultural, os encontros com amigos, os passeios fora do concelho), mas a dispersão em que antes vivíamos, correndo de umas actividades para outras, deu lugar a uma maior concentração e dedicação ao que fazemos. Há um certo alívio em não ter de ir a lado nenhum, não estar a perder nada, ninguém ficar chateado porque não aparecemos.

Dizem que os efeitos psicológicos da pandemia são menos graves em quem gosta de estar sozinho. Não sei. Sei que na outra vida vivíamos com demasiadas solicitações, por vezes saltando de umas para outras sem lhes tomar o gosto. O tipo de cansaço que sentimos agora é diferente, a fadiga pandémica, o tédio do confinamento. Ainda assim, creio que viver todos os dias era mais cansativo antes.

Até para a semana,

Céu

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