Família no divã

Ilustração: Alice Gomes

Queridas Senhoras,

um ano de pandemia deu cabo da família, estreitou os laços, tornou-nos mais frágeis, mais fortes, mais isolados, mais unidos, o quê? Suponho que tenha havido de tudo. Uma coisa é certa: todos precisamos de terapia. Sempre achei que a terapia familiar devia ser algo muito mais comum e acessível. Porque manter uma família funcional e emocionalmente saudável é um pequeno milagre. Cada uma das três grandes tarefas que nos ocupam diariamente (trabalho, família, lides domésticas) seria suficiente para preencher um dia com cinco ou seis horas de trabalho, que é o tempo em que conseguimos manter uma produtividade razoável (mais do que isso é fingimento). Mas temos de encaixar tudo no mesmo dia, com prejuízo de pelo menos alguma das áreas. Ou não cumprimos na totalidade os nossos afazeres profissionais, ou a casa está uma miséria, ou os miúdos ficaram sem acompanhamento. Não há milagres. Excluindo, claro está, quem tem a gestão doméstica assegurada por uma equipa profissional que trate de compras, refeições, limpezas, roupas, reparações, explicações e planeamento geral.

Estamos confusos. Não percebemos nada do mundo. Precisamos de falar. Mas conseguimos falar, queremos falar? Temos quebras, gritamos, choramos. Remetemo-nos ao silêncio. Vai cada um para seu canto, se houver um canto para cada um. Reencontramo-nos à hora das refeições, acabrunhados, sem forças para reestabelecer a concórdia ou dispostos a mais um esforço. Aquilo que somos capazes de manter sob controlo é cada vez menos. Não sabemos se vamos manter o emprego ou uma qualquer forma digna de subsistência nesse futuro distópico que se avizinha, a harmonia familiar, a saúde física e mental, o gosto pela vida, a felicidade dos nossos filhos.

Precisamos de falar. Mas como, com quem, para quê? Mal ou bem, as rotinas que antes regiam as nossas vidas resguardavam-nos dos confrontos diários e permanentes a que agora estamos sujeitos. Os pequenos rituais de reencontro, como o correu o teu dia, o que é o jantar, perderam o sentido. Eu sei como correu o teu dia. Estive o dia inteiro a ouvir o teu dia. O distanciamento social criou uma hiper proximidade com a qual temos dificuldade em lidar. A existência fora de casa reduziu-se ao mínimo, não temos experiências para contar e enriquecer a conversa, não vamos passear a sítios diferentes, não temos jantares marcados, não temos de negociar saídas de adolescentes até às onze da noite. Ninguém sai depois das vinte horas.

A terapia familiar devia ser uma consulta regular do centro de saúde, tal como a de planeamento familiar. Suponho que um agendamento anual seria suficiente para casos não demasiado problemáticos. Consulta de rotina em que o terapeuta averiguaria como vão as coisas entre o casal, entre pais e filhos, entre irmãos. Faríamos testes e dramatizações, falaríamos dos nossos medos, mágoas, dúvidas, afectos. Analisaríamos os padrões de comportamento da família e discutiríamos como melhorar a comunicação. Claro que podemos tentar fazer tudo isto autonomamente, sem orientação, mas somos capazes? Não estamos demasiado ocupados, perdidos, assustados?

E afinal de contas, o que é o jantar? Ainda por cima hoje é domingo. Ao domingo ninguém sabe bem o que é o jantar.

Até para a semana,

Céu

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