Give me something familiar

Querida Mariana,

na sequência de um encontro surreal e potencialmente perturbador com um vizinho, tenho estado a dissecar a natureza dos diálogos. Não é nova em mim, esta questão. Mas de vez em quando agudiza-se.

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Esta é uma das vantagens de estar em modo escrita. Perante uma bizarria humana, em vez de me atormentar com a tentativa de compreendê-la, pergunto-me: mas como é que eu conseguiria escrever exatamente "isto"? Na verdade, continuo a atormentar-me com a tentativa de compreendê-la, mas retirando-me da equação. É muito mais pacífico, este sistema. Além de ser mais criativo, também. Ok, não me será possível em todas as situações (ou não é desejável que me seja possível, uma vez que isso seria "laboratorizar" a vida - há casos devidamente documentados).

Escrever exatamente "isto", no que diz respeito aos diálogos, é escrever exatamente aquilo que cada interveniente diz, em vez de escrever aquilo que um diz e aquilo que esse mesmo ouve do outro. São coisas diferentes. Deuses, se são. O problema, a questão fundamental, a grande bizarria humana, está no facto de ser assim que nós dialogamos todos os dias, acreditando piamente que estamos a comunicar. Falamos e ouvimos o que pensamos que o outro está a dizer. Somos preconceituosos, mesmo que assim não nos consideremos. Por preguiça, muitas vezes. É mais fácil falar em clichés e filtrar o que ouvimos através de clichés. E não pensar mais no assunto.

Quem de nós não arruma as pessoas em categorias, classificando depois todos os seus atos e intervenções à luz dessa categorização? Ah, pois, os homens coiso e tal. Já se sabe, é advogado. Escusas de perguntar isso a um adolescente. Os lisboetas são todos não sei quê. É um filho do meio, estás a ver?

Em casa, somos capazes de ter diálogos surdos de manhã à noite, em que toda a gente "já sabe" o que é que toda a gente quer dizer - o Michael Cunningham é brilhante a (d)escrever isto, estou agora a ler «Ao cair da noite». - O mesmo na rua, no trabalho, nas viagens. E, com isto, emburrecemos, empobrecemos e somos muito menos felizes.

Também há exceções, eu conheço algumas, felizmente. E socorro-me delas sempre que sinto que preciso de limpar dos meus preconceitos uma determinada informação: "Como é que x, y ou z, ouviria isto"? Ouvir sem julgar é, para mim, a maior prova de inteligência.

E como é que se escreve exatamente "isto", perguntava eu? De repente, ocorrem-me Marguerite Duras, Alçada Baptista, Iris Murdoch, Jack London, Doris Lessing, Sándor Márai. Fiquemos por aqui, muitos mais haverá. Escritores dotados de uma inteligência que transcende a preguiça social e nos presenteia com diálogos genuínos, em que lemos exatamente aquilo que cada interveniente diz - a versão crua, não editada.

É habitual atribuir-se esta particular habilidade à omnisapiência do autor. Eu prefiro pensar que reflete a humildade do autor, a sensata assunção de que ninguém sabe tudo. Louvável postura, soubéssemos nós aplicá-la nas nossas vidas, todos os dias. Ou de vez em quando, pelo menos, para começar.

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Comentários

  1. Patricia Frazão14/02/11, 22:19

    Marta, para mim este é um assunto que me vem tantas vezes à cabeça. Para ouvir os outros sem julgar é preciso estarmos despidos de nós próprios (por breves instantes). E esse é um exercício que tem de ser generoso não achas? Quero entender-vos na vossa pele. (divaguei)

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  2. Ana Marta Ramos15/02/11, 09:16

    Claro, prima. Generoso e, não consigo deixar de associar esta palavra, humilde. Duas virtudes muito difíceis - mas que são, na minha perspetiva, essencialmente inteligentes.

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