Pictures of you

Queridas Senhoras,

hoje regresso aos nossos posts musicados. Foi o Pictures of You, dos Cure, uma das canções da minha vida, que despoletou a sucessão de ligações que se seguirá.



. Remembering you, how you used to be

«Tenho pensado muito nisso aí, das fotos, falo com os passageiros e tal e descobri que é assim, é do ser humano, mesmo. A pessoa, olha só, a pessoa trabalha todo dia numa firma, vamos dizer, todo dia ela vai lá e nunca tira uma foto da portaria, do bebedor, do banheiro, desses lugares que ela fica o tempo inteiro. Aí, num fim de semana ela vai pra uma praia qualquer, leva a câmera, o celular e tchuf, tchuf, tchuf. Não faz sentido, pra que que a pessoa quer gravar as coisas que não são da vida dela e as coisas que são, não? Tá acompanhando? Não tenho uma foto da minha esposa no sofá, assistindo novela, mas tem uma dela no jet ski do meu cunhado, lá na Guarapiranga.»

Um taxista viúvo foi parar à coluna de Antonio Prata, na Folha de S. Paulo, por confessar as saudades que sente da mulher, da mulher de todos os dias, e o desânimo de não conseguir encontrá-la, essa versão desprevenida e crua, nos álbuns de fotografias da família.

. And you finally found all your courage to let it all go

«Over the course of their 15-year friendship, Susan Sontag would often complain to Annie Leibovitz that, despite being one of the most famous photographers in the world, she never took any pictures whenever they went out together. It's a complaint that Leibovitz has had cause to look back on, lately, as a grim kind of irony: during the last weeks of Sontag's life, Leibovitz forced herself to take photographs and now, nearly two years after her friend's death, she has published them in a book.» Emma Brockes, The Guardian

Quando descobri a escritora Susan Sontag, parti à descoberta da mulher Susan Sontag - sofro de um considerável voyeurismo literário, não me bastam as palavras, preciso da ilusão de conhecer a pessoa que as escreveu. Através de Sontag, interessei-me por Annie Leibovitz, a fotógrafa rock star, sobretudo quando percebi que esta compensa o lado mais encenado da sua fotografia com a busca de registos crus. Como os dos últimos dias de Sontag, os dos últimos dias do seu pai. Guardar guardar guardar a vida mesmo (ou sobretudo) quando esta já intersecciona com a morte.

. There was nothing in the world that I ever wanted more

Duas vidas que entraram pela minha adentro nestas últimas semanas, via redes sociais, e que mexeram muito comigo, com as minhas memórias de filha de uma mãe doente, com o meu coração de mãe de um filho saudável. Provavelmente deram por elas, também. O que as liga entre si (e que me lembrou Annie Leibovitz, o taxista viúvo e os Cure) é o facto de terem sido partilhadas connosco ao longo de dias de sofrimento, até ao último. O último dia de Jennifer, o último dia do Rodrigo.

. I've been looking so long at these pictures of you / That I almost believe that they're real

Os nossos filhos estão a crescer num mundo demasiado editado, e acabarão por acreditar que a vida é, de facto, a sua melhor versão.
Estou a falar de extremos, eu sei. Mas os extremos também começam por um começo. O começo somos nós que o decidimos quando registamos os nossos dias, os dias das nossas famílias, e depois seleccionamos apenas as fotografias em que 'gostamos de nos ver' e apagamos as restantes, como se, com estes gestos, apagássemos as memórias que não cabem no nosso apertado crivo.

Esta que vos escreve é pródiga em auto-censura. Mas a vida não é editável. As memórias também não deveriam sê-lo.

Beijinhos a todas

Comentários

  1. [...] Jón Kalman Stefánsson  (e aqui) Keeping Things Whole Lentidão Memórias  (e aqui) Neuman, Andrés Orgulho Penelope Fitzgerald Philip Barrow Quarenta anos Reler Respirar [...]

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