Queridas Senhoras,
o centenário do nascimento de Carson McCullers assinalado no mês passado fez-me querer voltar a esta escritora. Cá em casa só tenho os Contos Escolhidos, que agora reli para poder transcrever as minhas passagens preferidas (sim, continuo com a mania das fichinhas). E esta releitura reacendeu em mim a vontade de ler mais e mais desta mulher. Também gostava de poder conhecê-la, conversar com ela, fumar um cigarro com ela. Mas isso já é capaz de ser mais difícil.
Em 'O rapazinho assombrado', senti o coração acelerar e fui inteiramente contaminada pela tensão crescente, brilhantemente orquestrada linha após linha, daquela tarde em que um adolescente regressa a casa e não encontra a mãe no sítio onde costuma estar todos os dias, a fazer as mesmas coisas. O problema reside na memória dolorosa daquela vez em que...
Hugh não suportava a calma triste e a mãe que amava tanto. Não suportava o seu amor nem a beleza da mãe. Limpou as lágrimas na manga da camisola e levantou-se da cama. - Nunca te vi tão bonita, nem um vestido e uma combinação tão bonitos.
'Os estranhos' junta um jovem americano e um judeu alemão quinquagenário num autocarro, pelo Sul dos EUA. Juntos, conversaram um pouco sobre as suas vidas (o judeu, muito pouco), comentaram a paisagem,
Comeram em silêncio com o prazer vagaroso dos que conhecem a importância da comida.
O rapaz está na flor da juventude e é com entusiasmo que fala da irmã grávida e das três raparigas que elegeu para de entre elas escolher a sua futura mulher. O judeu, mais observador que participante, deixou o terror em Munique, há dois anos, e acredita que conseguirá reconstruir a sua vida (e a da sua família, que se lhe juntará mais tarde) em Lafayetteville. Da família que lhe resta, pelo menos.
De tal forma que o judeu podia falar da filha com compostura e pronunciar o seu nome sem um estremecimento. Mas quando no autocarro viu um homem inclinar a cabeça para um lado a fim de ouvir umas palavras, o judeu ficou à mercê da dor. Porque a filha tinha o hábito de ouvir com o rosto um pouco inclinado para o lado e só erguer o olhar rapidamente quando o interlocutor se calava. O gesto casual do homem velho foi o chamamento que libertou nele a dor há tanto contida; e o judeu encolheu-se e baixou a cabeça.
'Fragmento sem título' é o nome dado ao último conto do livro, o mais longo e mais intrincado, como se se tratasse de um esboço de romance. Aqui, conhecemos dois irmãos, Sara e Drew, que por sorte não se mataram a tentar voar num planador construído com as suas próprias mãos, e que, apesar de muito unidos, acabaram por se distanciar.
Os seus olhos escuros tinham uma forma especial de fixar intensamente as pessoas, depois as pálpebras descaíam de repente como se compreendesse tudo e continuasse aborrecido.
Sozinho no telhado, sentia sempre que tinha de gritar - mas não sabia o que queria dizer. Parecia-lhe que, se conseguisse transformar aquela coisa em palavras, não seria um rapaz com grandes pés ásperos e nus e mãos desajeitadas a saírem das mangas demasiado curtas do casaco. Seria um grande homem, quase um deus, e o que dissesse tornaria claras e simples as questões que o preocupavam e às outras pessoas. A sua voz teria a força da música... os homens e as mulheres deixariam as casas para o ouvirem e, reconhecendo a verdade das palavras, seriam como uma única pessoa e compreenderiam tudo o que se passava no mundo.
Há um momento em que todos querem fugir de casa, mesmo que se dêem bem com a família.
Para terminar, tenho que falar sobre a tradução. Ana Teresa Pereira (na foto, à esquerda) foi a responsável pela selecção e tradução destes contos de Carson McCullers (na foto, à direita). Vocês sabem que eu gosto particularmente da escrita de Ana Teresa Pereira, do universo em que ela se move, e é evidente para qualquer leitor da sua obra que as suas referências são anglo-saxónicas, mais até do que portuguesas. Mas isso não faz dela tradutora, e este trabalho é a prova disso.
Eu comecei logo por embirrar com a primeira frase do segundo conto: «Estava a chover, naquela manhã, e ainda fazia muito escuro.» Porquê tanta vírgula? Não me soou a McCullers.
E que raio é isso de "fazer escuro"? Dizem-no os brasileiros - pelo menos, disse-o Manuel Bandeira no seu Poema só para Jaime Ovalle: «Quando hoje acordei, ainda fazia escuro / (Embora a manhã já estivesse avançada)». Dizem-no os franceses a torto e a direito. Mas em bom português não "faz escuro".
Fui à procura da frase original de McCullers, que é a seguinte: «It was raining that morning, and still very dark.» E aconselhei-me junto de quem sabe disto muito mais do que eu, a minha amiga Sónia Oliveira, tradutora (e futura co-autora aqui no Senhoras), que me deu uma possível tradução sua, sem vírgulas, sem o verbo fazer, muito mais bonita, muito mais McCullers, muito mais bem escrita. E sem estar mergulhada no assunto.
E que raio é isso de "fazer escuro"? Dizem-no os brasileiros - pelo menos, disse-o Manuel Bandeira no seu Poema só para Jaime Ovalle: «Quando hoje acordei, ainda fazia escuro / (Embora a manhã já estivesse avançada)». Dizem-no os franceses a torto e a direito. Mas em bom português não "faz escuro".
Fui à procura da frase original de McCullers, que é a seguinte: «It was raining that morning, and still very dark.» E aconselhei-me junto de quem sabe disto muito mais do que eu, a minha amiga Sónia Oliveira, tradutora (e futura co-autora aqui no Senhoras), que me deu uma possível tradução sua, sem vírgulas, sem o verbo fazer, muito mais bonita, muito mais McCullers, muito mais bem escrita. E sem estar mergulhada no assunto.
A frase seguinte, ainda no mesmo conto, dá-nos um streetcar café que ficou por traduzir (sem o cuidado de juntar uma nota a explicar o que é) - e acrescenta duas vírgulas onde não havia nenhuma. Acreditem, eu adoro vírgulas. Mas a frase traduzida não tem nada do fôlego da original. E isso é um péssimo trabalho de tradução. Citando a Sónia Oliveira, «traduzir não é alinhar palavras num carreiro, já dizia a Svetlana Geier.»
Bem, mas deixei a minha principal fonte de irritação para o fim, porque se repete em vários contos e porque me custa a crer que ninguém na Relógio d'Água tenha reparado nela: a harpa.
Deixem-me situar-vos: estamos no Sul dos EUA, nos anos 1930, mais coisa, menos coisa. E Ana Teresa Pereira acha que aquele pessoal andava por lá a tocar harpa a torto e a direito. Sim, o original fala em harp, e sim, um dicionário básico traduz harp para harpa, mas um tradutor a sério não se fia em dicionários básicos e trabalha com fontes mais fidedignas e, sobretudo, com o contexto. Porque a harp sulista é, evidentemente, a harmónica. Em caso de dúvida, podem consultar esta explicação para totós.
Deixem-me situar-vos: estamos no Sul dos EUA, nos anos 1930, mais coisa, menos coisa. E Ana Teresa Pereira acha que aquele pessoal andava por lá a tocar harpa a torto e a direito. Sim, o original fala em harp, e sim, um dicionário básico traduz harp para harpa, mas um tradutor a sério não se fia em dicionários básicos e trabalha com fontes mais fidedignas e, sobretudo, com o contexto. Porque a harp sulista é, evidentemente, a harmónica. Em caso de dúvida, podem consultar esta explicação para totós.
Enquanto me lembrar disto não darei mais dinheiro a ganhar à Relógio d'Água. Vou comprar os meus próximos McCullers nas versões originais. E, pelo sim, pelo não, na semana passada comprei um livro da Siri Hustvedt, O Mundo Ardente, também na versão original, The Blazing World. Gato escaldado...
Beijinhos a todas,
Marta
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