Copérnico não acreditava na verdade



Queridas Senhoras,

a primeira obra que li de John Banville foi O Livro da Confissão e desde logo a precisão da linguagem do irlandês lhe garantiu entrada na minha galeria pessoal. Depois disso, li Fantasmas e Os Infinitos. Mas hoje é de Doutor Copérnico que vos quero falar, um trabalho minucioso de recriação da vida e das inquietações do homem que ousou defender o heliocentrismo, mesmo sem acreditar na sua capacidade de prová-lo.

Doutor Copérnico faz parte de uma colecção de três volumes que Banville dedicou àqueles que considera serem o trio revolucionário: Copérnico, claro, Kepler e Newton. Quero ler também estes dois últimos, mas não me parece que estejam traduzidos para português. Também quero ler O Mar, Man Booker Prize 20015, que foi traduzido entre nós mas, inexplicavelmente, não consigo encontrar à venda; e ainda A Guitarra Azul, a que Eduardo Pitta atribuiu 5 estrelas, concluindo a sua crítica com a seguinte frase: «É raro, mas acontece: um romance em que nenhuma palavra é supérflua.»

Bem, mas voltemos ao Doutor Copérnico, nascido Nicolau, em 1493, em Torum, na antiga Prússia (hoje, Polónia). Uma criança brilhante, introspectiva, que foi forçada a aproximar-se do pai quando a mãe morreu, e com ele aprendeu que seria mercador quando fosse grande; e que foi forçada a deixar a sua terra quando o pai morreu, sob responsabilidade do tio Lucas, para ir estudar para Włocławek.

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«Era o Vístula, o mesmo rio que banhava em vão o lodo inesgotável de Torum - ou seja, o nome era o mesmo , mas o nome nada significava. Aqui o rio era jovem, por assim dizer, um regato límpido e veloz, enquanto lá era velho e cansado. E no entanto estava simultaneamente aqui e lá, era novo e velho simultaneamente, e a sua juventude e velhice não eram separadas por anos mas por léguas. Murmurou em voz alta o nome do rio, e de repente estilhaçaram-se nessa palavra os conceitos do espaço e do tempo.»

«Tornara-se uma coisa sem substância, uma teia de ar ondulado ao sabor de rubros ventos. Sentia-se esfolado, privado da pele vital que o protegia. Toda a superfície do corpo lhe doía, carne, unhas, cabelos, os próprios filamentos dos olhos, na ânsia de algo que ele não sabia nomear nem tão-pouco imaginar. Na missa espreitou, da galeria do coro, as mulheres da cidade ajoelhadas lá em baixo, no meio da congregação. Eram criaturas irremediavelmente corpóreas. Mesmo as mais jovens e graciosas de entre elas estavam muito longe de igualar os espíritos bruxuleantes e cantantes que voavam ao seu encontro na escuridão das suas noites agitadas. Tão-pouco podiam reconfortá-lo os rapazinhos choramingas e malcheirosos que percorriam o dormitório arrastando os cobertores pelo chão, oferecendo-se em troca do consolo de uma cama partilhada. O que procurava era algo diferente da mera carne, algo feito de luz e ar e de uma alegria grave e maravilhosa.»

«- Pensa nisto, meu filho, escuta: todas as teorias não passam de nomes, mas o mundo em si é uma coisa.»

Estuda matemática e astronomia em Cracóvia mas acaba por ser empurrado para Teologia, em Roma, quando o tio é nomeado Bispo da Igreja Católica.
«Ele tinha uma consciência nítida da sua condição de estrangeiro, e sentia saudades do frio do norte. Este não era o seu mundo, este calor, estas paixões estridentes, este ar sufocante e raso que tão pesadamente lhe caía nos pulmões, como o hálito de outra pessoa; nada aqui o tocava, e ele não tocava coisa nenhuma.»

Regressa à Prússia já formado em Direito Canónico, onde o espera um lugar de Cónego. E é aí que vive o resto dos seus dias.
«Tinha trinta e três anos; estava a perder os dentes. A vida fora outrora um sonho luminoso e límpido que o esperava alhures, para lá da desilusão dos dias vulgares, mas agora, quando olhava para esse lugar outrora ocupado por um deslumbrante vaso doirado de possibilidades via apenas um ser vago e sombrio, de membros mutilados, a vogar na sua direcção. Não era a morte, mas sim algo bem menos nítido. Era, imaginava ele, o fracasso. Aproximava-se um pouco mais a cada dia que passava, e cada dia ele facilitava um pouco mais a sua vinda, pois não era o seu trabalho - o seu verdadeiro trabalho, ou seja, a astronomia - um processo de fracasso progressivo? (...) Pensava que o explanar da sua teoria seria coisa pouca, mero trabalho rotineiro, de desbaste: mas era mais do que desbaste, afinal, uma autêntica carnificina.
(...) E no entanto, paradoxalmente, era feliz, se é que podemos usar tal palavra. Apesar do sofrimento e das desilusões repetidas, apesar do vazio da sua vida pardacenta, não havia no mundo felicidade que se comparasse àquela dor deliciosa.»

«Julgara ser possível dizer a verdade; agora via que apenas o dizer podia ser dito.»

Em 1543, Copérnico morre em Frauenburg, no mesmo ano e na mesma cidade em que é editada a sua obra Da revolução de esferas celestes.
«-Dizei-me, Osiander - perguntou - dizei-me sinceramente: é demasiado tarde para deter a publicação? É que, se fosse possível, eu detê-la-ia.»

«Copérnico não acreditava na verdade. Creio que já tive ocasião de dizer isto.»

O ambiente dissoluto dos colégios e das universidades que frequenta, mesmo sob os auspícios de Roma; a vida de perdição escolhida pelo seu irmão e punida com a mais denunciadora das doenças; a prima com quem coabita, numa situação dúbia, que incomoda a Igreja; a sua reclusão e o aturado trabalho de investigação em astronomia, por detrás da capa de cónego; pecado e expiação, tormenta e beatitude sempre lado a lado, tão próximos que, muitas vezes, se confundem.

Não há ficção como a realidade.

Beijinhos a todas,

Marta

Comentários

  1. [...] começar pelo último post da Marta, Copérnico não acreditava na verdade. «A vida fora outrora um sonho luminoso e límpido que o esperava alhures, para lá da desilusão [...]

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